Amar não é algo tão natural assim, demanda bastante trabalho psíquico
Como psicanalista, escutar sobre o amor faz parte da minha rotina. Isso inclui relatos de excesso, nos quais indivíduos se esquecem de si mesmo em benefício do outro, queixas sobre a sensação de insuficiência na relação, questões relacionadas à traição e até decisões difíceis sobre colocar ou não um ponto final no relacionamento. O amor atravessa a existência humana de diferentes maneiras. Ele pode aquecer, assustar, ferir, curar, impulsionar e até paralisar.
O amor nasce abraçado ao luto, pela triste constatação de que o objeto amado nunca poderá corresponder totalmente aos ideais que criamos. O outro nunca será exatamente como imaginamos. Como lidar com esse banho gelado onde a realidade desafia a perfeição imaginária? Nessa idealização, tudo se encaixa perfeitamente, mas sabemos muito bem que no dia a dia o amor manca. Sempre há aquela pedra no sapato que nos incomoda. Isso nos coloca diante de um dilema: enfrentar a quebra de expectativas ou procurar o próximo indivíduo que, supostamente, preencherá o vazio que tanto nos provoca mal-estar?
Como lidar com a dor de descobrir que nos apaixonamos por indivíduos que têm desejos próprios? O ser amado deseja coisas que vão para além de nós mesmos. A ferida narcísica de não ser o centro da vida do outro é reaberta, evocando memórias de momentos semelhantes que tivemos que enfrentar com nossos pais e cuidadores. Isso se realmente enfrentamos, claro. Muitos de nós ainda se encontram fixados na mesma dinâmica. Queremos reinar sobre a vida do outro, lutar com unhas e dentes para que a coroa imaginária não seja retirada de nossas cabeças.
Toda a trama já estava elaborada, crescemos imaginando nossa história. Ela parecia perfeita, até que, em um determinado momento, um encontro inesperado bateu à porta da senhora paixão. A porta é entreaberta e o caos escapa. O caos da falta. O que deveria ser o impulso do desejo, afinal, pois se nada me falta, não há desejo, se torna um suplício. Como podemos existir sem o outro amado?
O desafio, como Lacan destacou, é que “ao persuadir o outro de que ele tem o que nos pode completar, nós nos garantimos de poder continuar a desconhecer precisamente o que nos falta”. Em suma, a paixão temporariamente preenche essa lacuna. Mas logo a falta ressurge, só que agora personificada no outro. “Eu preciso exatamente dessa pessoa, não me vejo feliz sem ela”. Mas o que a ausência dela evoca? O que está faltando em mim que procuro tanto no outro?
E quanto ao término, talvez uma das coisas mais angustiantes não seja exatamente se deparar com o que perdeu, mas sim o que fazer com a liberdade recém adquirida. A vida “prêt-à-porter” escorregou por entre os dedos como um punhado de areia. Planos, ideais, expectativas, tudo desapareceu. O luto é mais sobre o fato do outro não precisar mais de mim do que sobre a perda do outro em si. O amor implica desejar ser requisitado, sentir-se necessário na vida do outro. Mas, em um certo dia, você se tornou dispensável. O que fazer com o que resta, no caso, nós mesmos?
O amor e o luto estão intrinsecamente ligados e como Freud escreve em “O mal-estar na civilização”: “uma pequena minoria de pessoas acha-se capacitada, por sua constituição, a encontrar felicidade no caminho do amor”. Logo, amar não é algo tão natural assim, demanda bastante trabalho psíquico.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko