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Internacionalização de Porto Alegre: debate sobre o futuro da cidade

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"Estamos assistindo uma profunda transformação de nossa cidade que poderá deixar marcas irreversíveis no presente e impactar nossas vidas no futuro" - Foto: Joana Winckler
Porto Alegre está na contramão do debate mundial de modelo de cidade

O Congresso Mundial de Ciência Política, que ocorreu em Buenos Aires, em julho deste ano, pautou em uma de suas sessões o debate sobre o futuro das cidades pós-pandemia. Esse foi um momento importante de reflexão sobre a necessidade de pensar novos desenhos de cidades que promovam mais espaços públicos, áreas verdes, praças, parques e principalmente transformação de áreas para pedestres e menos circulação de automóveis.

A centralidade das propostas consistia na relação das pessoas com a cidade e na necessidade de promover transformações que resultem em mais espaços ao ar livre de livre acesso aos cidadãos. Diante desse novo cenário para pensar as cidades no futuro, depois de dois anos de cenário pandêmico e com a crise climática avançando no mundo, vemos que a cidade de Porto Alegre está na contramão do debate mundial, mas que, além disso, esse modelo de cidade poderá comprometer o nosso futuro e das futuras gerações.

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A cidade do consumo na promoção desenfreada por espaços privativos busca transformar parques públicos em parques temáticos, avança no corte de árvores e na construção de prédios cada vez mais altos, transformando Porto Alegre em um “museu a céu aberto” das incorporadoras deixando as marcas expostas no alto dos prédios como símbolos do avanço da expansão imobiliária.

A revisão do Plano Diretor, que poderia frear um pouco esse processo para que pudéssemos fazer uma leitura real da cidade, vem sendo atravessada por interesses econômicos frente ao bem-estar urbano e à participação social.  
    
Desde a década de 1990, Porto Alegre esteve na vanguarda das discussões sobre o desenvolvimento das cidades, consagrando-se internacionalmente como a “cidade da democracia participativa”, através de experiências como o Orçamento Participativo (OP) e a realização do Fórum Social Mundial. A cidade internacionalizou-se tendo como bandeira pautas progressistas que visavam a construção de uma cidade mais justa. No entanto, a mudança começa a acontecer a partir de 2010, com a necessidade de um rebranding, pois seríamos sede da Copa do Mundo de 2014. 

A estratégia consistia em alinhar a agenda urbana da cidade com as “melhores práticas de gestão”, a partir de noções como inovação, desburocratização, eficiência, empreendedorismo, inteligência, modernização, entre outros tantos termos presentes em qualquer folheto empresarial, que indicassem que a cidade está aberta ao dinamismo e às novidades que as conexões globais podem proporcionar. Assim, a cidade poderia ser inovadora, inteligente e empreendedora, aliando-se a outras cidades que tinham este mesmo objetivo, desde que fossem seguidas determinadas práticas, adquirissem determinados produtos e atraíssem determinados agentes. Mas o mais importante, Porto Alegre não podia apenas ser reconhecida superficialmente como uma cidade aberta, mas deveria, profundamente, porta-se como uma, preferencialmente, em escala transnacional. 


"A revisão do Plano Diretor, que poderia frear um pouco esse processo para que pudéssemos fazer uma leitura real da cidade, vem sendo atravessada por interesses econômicos" / Foto: Vanessa Marx

Assim, as últimas três gestões os prefeitos têm buscado atrair investimentos internacionais com a estratégia de colocar Porto Alegre no mapa das cidades inteligentes, tendo como marco importante a participação no Smart City Challenge, a iniciativa social da empresa IBM para competição entre iniciativas inovadoras e inteligentes entre cidades. Em 2012, Porto Alegre ficou em primeiro lugar com o projeto Cidade Cognitiva que tinha por objetivo simular os impactos das obras e ações demandadas pelo Orçamento Participativo. Ironicamente, foi a partir do OP que conseguimos, enfim, entrar no clube das smart cities.

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Desde então já se passaram quase 10 anos. Duas novas gestões assumiram, ambas alinhadas com o modelo da cidade empresarial e de planejamento mercadológico. Em escala local, criaram-se leis que concedesse à iniciativa privada o teste e análise de soluções inovadoras para a manutenção de serviços em praças e parques, bem como a instalação de mobiliário urbano e serviços digitais da prefeitura, alinhadas com as leis municipais da Liberdade Econômica (LC 876/2020) e de Liberdade Tecnológica (LC 12.828/2021), ao preço de diminuir o papel da nossa empresa pública de tecnologia e inovação. O objetivo consistia em buscar no mercado as soluções urbanas que a cidade necessita, garantindo toda a “segurança jurídica” que o mercado necessita. Por seu turno, a estratégia em escala global consistia no envio de comitivas para eventos e encontros no eixo euro-americano, a fim de espalhar nossa marca de cidade “inteligente” e “amiga dos negócios”. 

De fato, foram criadas muitas vantagens para diferentes mercados: imobiliário, soluções tecnológicas, infraestrutura urbana, gestão de resíduos, saneamento, mobiliário urbano, entre outros. Os esforços tiveram resultado: a cidade passou a fazer parte de redes de cidades inteligentes, firmou parcerias e concessões, arrecadou financiamentos e, inclusive, foi reconhecida por sua vocação para a inovação, sendo escolhida como sede do South Summit Brazil, o braço latino-americano de um dos maiores eventos de inovação europeus.

A internacionalização de Porto Alegre deveria continuar contribuindo para o debate mundial de como pensar coletivamente o desenvolvimento de cidades mais humanas, democráticas e ambientalmente sustentáveis. O ativismo urbano e coletivos comprometidos com a democracia e com uma cidade mais justa vem denunciando e anunciando uma Porto Alegre cada vez mais edificada, adensada, fragmentada em projetos específicos e refém das incorporadoras. A expansão urbana verticalizada e a construção de condomínios fechados e bairros privativos, em áreas verdes, alteram a paisagem urbana. Estamos assistindo uma profunda transformação de nossa cidade que poderá deixar marcas irreversíveis no presente e impactar nossas vidas no futuro. Se um dia Porto Alegre foi a capital da democracia participativa, hoje ela é identificada como a “capital do South Summit”. 

No entanto, o reconhecimento como uma cidade inteligente e inovadora não acarretou em mudanças na forma como estamos construindo nossa cidade. Pelo contrário, fundamentou uma agenda neoliberal que tem aprofundado suas contradições socioespaciais. Embora, discursivamente, smart cities sejam cidades onde há eficiência de recursos e emprego de tecnologia para o desenvolvimento humano e social (com inovação, integração e sustentabilidade), na prática, o que se observa em Porto Alegre é diametralmente o oposto daquilo que se espera para um futuro urbano inovador.

* Vanessa Marx, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Ufrgs e coordenadora do Observatório das Metrópoles-Núcleo Porto Alegre, e Joana Winckler, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Ufrgs e pesquisadora do Observatório das Metrópoles-Núcleo Porto Alegre.

** Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko