Sobe escada, desce escada, manuseia hortaliças, frutas e embutidos, checa o preço, estende a toalha, dispõe os cestos de palha, recheia a mesa. Assim começa a rotina diária de Agatha Picollo, coordenadora do Armazém do Campo de Porto Alegre. A missão de Agatha é bastante clara: garantir o acesso à alimentação saudável para todas e todos. Como? Por meio de sua luta pelo reconhecimento do valor social da terra.
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Quem vai até o Armazém, localizado na Rua José do Patrocínio, no bairro Cidade Baixa, nº 888, é recebido com uma mesa farta de frutas, verduras e legumes fresquinhos posta logo na entrada. O espaço, constituído por dois andares, exibe prateleiras lotadas pela diversidade de alimentos. Mel, pães, leite, cereais, arroz, feijão, sucos e defumados são alguns dos produtos que podem ser encontrados ali.
"Esses produtos que estão nas prateleiras têm muita história por trás. É muita comida boa e de qualidade que chega no nosso prato. A gente precisa da Reforma Agrária. É importante a gente pensar no que passou a família que produziu esse alimento", preludiou Agatha.
Quando criança, Agatha amava observar a avó brotar da terra os saborosos alimentos que lhe eram servidos nas refeições. Enquanto a avó de Agatha plantava verduras e legumes para nutrir a família, ela também semeava em sua neta a percepção de que o cultivo de alimentos saudáveis é sinônimo de cuidado com o próximo.
Crescida em Santana do Livramento, na Fronteira Oeste do estado do Rio Grande do Sul, Agatha foi percebendo que nem todos possuíam acesso à alimentação, sobretudo, saudável. E que a desigualdade na distribuição de terras em seu país era tamanha que parte da população podia ser chamada de os “Sem Terra”. Agatha, então, decidiu que deveria agir para transformar essa realidade.
Aos 18 anos, ingressou em Desenvolvimento Rural e Gestão Agroindustrial na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs) com o propósito de encontrar uma maneira de contribuir para o fortalecimento da agricultura familiar. Mas pode se dizer que foi o amor, em suas mais diversas formas, que fez as sementes de luta pela terra germinarem em Agatha.
Na graduação, conheceu o colega de faculdade Jonas Picollo, filho de produtores rurais oriundos do assentamento Cerro dos Munhoz, situado no interior de Santana do Livramento e pertencente ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O sentimento recíproco de mudar o mundo pela alimentação uniu Agatha e Jonas: os dois se apaixonaram, começaram a namorar e se tornaram companheiros de vida e de luta.
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Ao lado de Jonas, Agatha passou a ver de perto o dia a dia de trabalhadoras e trabalhadores rurais assentados. No assentamento, Agatha testemunhou a angústia e a esperança daqueles que não tinham alimento para colocar na mesa. Lá, conversou com mulheres, crianças, idosos e, sensibilizada, envolveu-se com as histórias ouvidas.
Em seu trabalho de conclusão do curso, Agatha se dedicou a documentar as vivências das mulheres Sem Terra. A partir desses encontros, ampliou a sua participação no MST e seu nome passou a representar a pauta feminista entre as mulheres camponesas assentadas.
Em 2022, Agatha foi convidada para integrar a coordenação do Armazém do Campo de Porto Alegre, ponto de venda de produtos orgânicos vindos de assentamentos do MST e da agricultura familiar. Sem hesitar, ela aceitou.
Com Jonas e o pequeno Davi, fruto da relação do casal, Agatha partiu da região fronteiriça rumo à Capital. Desde então, hoje com 29 anos, percorre diariamente um trajeto de 27 km de Nova Santa Rita, cidade onde mora atualmente, até Porto Alegre para tornar mais eficaz a distribuição de alimentos saudáveis a um preço justo.
No Armazém - que também é restaurante - há uma cozinha destinada ao preparo de almoços que são servidos no local de segunda a sexta-feira, ao meio-dia. Nesse horário, os sabores transpassam as prateleiras e enchem o prato de quem vai apreciar o cardápio do dia. Sob a coordenação de Agatha, o Armazém é composto totalmente por mulheres.
"Além de mim, são três na cozinha, duas no caixa e uma no atendimento. É o único Armazém do Campo 100% feminino", comentou Agatha com a altivez de quem reconhece o próprio legado.
Nas paredes do Armazém, pequenos quadros com fotografias e lemas históricos penduram a memória dos quase 40 anos de existência do MST. Recordações que se desprendem das molduras e se misturam à trajetória de Agatha.
Seu filho, Davi, de 6 anos, carinhosamente apelidado de “Sem Terrinha”, acompanha a jornada da mãe durante as férias escolares.
"Ele já está aprendendo o que significa o MST", disse, voltando o olhar para Davi que pintava um desenho na mesa ao lado.
"E o que o MST significa pra ti?", perguntei.
"É solidariedade, é alimentação saudável, é igualdade…", interrompeu-se, com a voz trêmula e os olhos marejando.
"É que eu me emociono quando falo porque só quem vive essa luta sabe…", explicou Agatha, tentando não chorar.
"Tá chorando mamãe?", perguntou Davi, largando o lápis colorido sobre a mesa.
"É… Mamãe tá…", respondeu ela.
Depois disso, Agatha riu de si mesma e continuou:
"Mas é isso, MST é cuidado com a terra, é… "É terra livre", completou Davi.
É também pelo maternar que Agatha enraíza o entendimento de que enquanto houver pessoas passando fome, será necessário romper cercas para plantar. Como mulher, mãe, trabalhadora e militante, Agatha continua a sua luta por um Brasil mais justo e solidário em que o acesso à alimentação saudável será soberano. A sua revolução começa na mesa.
Edição: Katia Marko