Tem se tornado mais fácil encontrar um nome para a nossa angústia do que determinar sua origem
Nos últimos anos, temos acompanhado um notável aumento no número de indivíduos portadores de um ou mais diagnósticos relacionados a transtornos mentais. Termos como depressão, bipolaridade, borderline, TDAH, autismo, entre outros, têm se difundido no discurso social. Será que a população está realmente tomada por transtornos mentais ou há uma sobrevalorização dos diagnósticos? Ou as duas coisas?
Também é relevante ponderarmos sobre o DSM - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - o qual é assustadoramente apelidado de “bíblia da psiquiatria" por profissionais que atuam no campo da saúde mental. Ao compararem com uma bíblia, ele adquire a conotação de suposta infalibilidade, sacralidade e sugere a posse da “verdade absoluta”. No entanto, o dilema reside no fato que este compêndio psiquiátrico tem se tornado o norte para muitos profissionais, moldando suas abordagens apenas em torno de diagnósticos. O efeito seria a redução do indivíduo a um sentido fixo, limitando sua existência a uma única perspectiva e impedindo outras possibilidades de serem consideradas.
Hoje em dia, parece que há uma tendência em confundir sentimentos humanos com os rótulos de diagnósticos psiquiátricos. Se alguém está se sentindo triste, automaticamente é (auto)diagnosticado com transtorno depressivo. Se experimenta muitos momentos de grande alegria, é interpretado como uma fase hipomaníaca da bipolaridade. Caso exista inquietações frente as expectativas elevadas, é logo associado ao transtorno de ansiedade generalizada.
O consumo excessivo de chocolate é enquadrado como compulsão alimentar. Sentir-se sobrecarregado e inquieto com um mundo caracterizado pela hiperaceleração é atribuído ao TDAH (transtorno de déficit de atenção com hiperatividade). Até mesmo o luto prolongado por mais de um ano pela perda de um ente querido é rotulado como luto patológico.
Tem se tornado mais fácil encontrar um nome para a nossa angústia do que determinar sua origem. Seja por meio de pesquisas no google, nas páginas dos jornais ou até mesmo nas conversas com amigos, expressões provenientes da psiquiatria se fazem presentes de maneira constante.
Quando exatamente esse fenômeno passou a fazer parte da nossa realidade? Como é que o discurso social acabou por transformar os sujeitos em pequenos manuais psiquiátricos ambulantes, levando-os a enxergar o mundo através de uma perspectiva predominantemente patológica?
Será que essa proliferação em massa de patologias não está, de certo modo, vinculada aos interesses do sistema capitalista? Afinal, se um diagnóstico é estabelecido para cada forma de sofrimento, um correspondente psicofármaco é, muitas vezes, prescrito para tratá-lo.
As transformações ocorridas ao longo dos anos no DSM, com a mudança no foco de critérios etiológicos (causais) para diagnósticos baseados em sinais e sintomas, não poderiam estar contribuindo para uma simplificação excessiva da natureza complexa do sofrimento humano? Uma abordagem que busca principalmente classificar e medicalizar não estaria colaborando para adaptar o sujeito a uma sociedade que muitas vezes funciona de forma adoecedora?
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko