Foi uma bela briga, mas, enfim, o produtivo cineasta bajeense Zeca Brito – que circula bem entre todos os gêneros do audiovisual – conseguiu sair consagrado da Serra gaúcha. Por pouco, seu documentário híbrido, “Hamlet”, que estreou no ano passado na Mostra Internacional de São Paulo, não consegue concorrer na Mostra de Longas Gaúchos do 51º Festival de Cinema de Gramado, encerrado no último fim de semana (20).
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A sessão estava marcada para a tarde de sexta-feira (18), com grande plateia presente. Mas uma falha na projeção, após os 15 minutos iniciais, pegou todo mundo de surpresa. A exibição foi cancelada junto do debate que ocorreria na sequência. A organização do festival transferiu a apresentação pública para o sábado pela manhã (19), mas alguns dos componentes do júri tinham seus voos de retorno agendados para esse horário.
À noite, passaria o longa “Luis Fernando Verissimo – O filme”, de Luzimar Stricher, e já ocorreria a premiação dos curtas brasileiros, ocupando o palco e a tela do Palácio dos Festivais. A produção conseguiu realizar uma sessão extra fechada para os jurados e equipe, após a cerimônia, encerrando-se já na madrugada de sábado.
Mesmo com menos espectadores, a exibição aberta ocorreu na manhã do dia seguinte, com debate bem prestigiado à tarde. Ao fim e ao cabo, deu tudo certo. Na noite de premiação, “Hamlet” recebeu cinco Kikitos: Melhor Filme, Melhor Direção (para o próprio), Melhor Ator (Fredericco Restori), Melhor Fotografia (Joba Migliorin, Bruno Polidoro, Lívia Pasqual e Zeca Brito) e Melhor Montagem (Jardel Machado Hermes).
Em 2022, “Casa Vazia” (atualmente em cartaz nos cinemas), de Giovani Borba, também recebeu cinco troféus (roteiro, ator, fotografia, trilha musical e som), mas não os principais da Mostra de Longas Gaúchos, que foram para “5 Casas” (Melhor Filme e Melhor Direção, para Bruno Gularte Barreto, além de Montagem para Vicente Moreno e Júri Popular).
É interessante pontuar que o mesmo Zeca Brito é que abriu os caminhos para os longas gaúchos serem mais valorizados no evento, enquanto foi diretor do Instituto Estadual de Cinema (Iecine), nos quatro primeiros anos do governo Leite. Antigamente, a mostra não tinha premiação e, depois, somente um Kikito para o considerado melhor entre os exibidos no Palácio dos Festivais. Desde 2022, ampliaram-se as categorias e as premiações.
“Hamlet” é o oitavo longa do diretor, cuja atuação política é bastante destacada. Ele, inclusive, esteve apresentando o longa “Legalidade” (2019) no Congresso Nacional nesta semana, que foi dedicada à memória do fato político de 1961.
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O agitador cultural ainda produz o Festival Internacional da Fronteira (Bagé/RS), cuja 14ª edição acontece de 29 de novembro a 3 de dezembro de 2023 na cidade de Bagé (RS).
Transitando entre documentário (com a equipe inserida em uma ocupação do movimento estudantil no Instituto de Educação General Flores da Cunha em Porto Alegre, em 2016) e a ficção (com o protagonista hesitando entre assumir sua liderança ou não, enfrentando os fantasmas de se transformar em adulto), “Hamlet” foi feito de forma totalmente independente.
No caos daquele ano, na iminência de um Golpe de Estado, os estudantes secundaristas se uniram aos movimentos sociais, tomaram as ruas em passeatas, protestos e reivindicações, cobrando seus direitos, para que a educação pública estadual não fosse “terceirizada” e ficasse refém de interesses privados.
Em 2017, a produção “Secundas”, de Cacá Nazário, resgatou o episódio da ocupação por alunos de Ensino Médio do prédio da Secretaria Estadual da Fazenda, no ano anterior, também na Capital, e saiu vitoriosa da Mostra Gaúcha de Curtas do 45º Festival de Cinema de Gramado. Em 2019, foi lançado um importante longa, “Espero tua (Re)Volta”, de Eliza Capai, retrato do movimento estudantil que ganhou força a partir do ano de 2015, ocupando escolas estaduais por todo Brasil.
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Após sete longos anos, é fundamental observar aqui que o resultado visto em tela e os troféus dourados e o discurso de “Hamlet” reverberam na mesma semana em que a ex-presidente Dilma Rousseff – que aparece no longa, após um ato, recebendo as reinvindicações dos estudantes e parabenizando o protagonista vivido por Fred Restori pelo seu aniversário de 18 anos – foi inocentada pelo TRF1 no caso das “pedaladas fiscais”, que motivou seu pedido de Impeachment.
Um tropicalista vindo do Sul do Brasil
Mestre em Artes Visuais pela Ufrgs, graduado em Realização Audiovisual pela Unisinos e Poéticas Visuais pela Ufrgs, o cineasta Zeca Brito (37 anos) é diretor e roteirista. Natural de Bagé (RS), atualmente circula trabalhando entre Porto Alegre, Rio de Janeiro e Argentina – onde também exibe “Legalidade”, neste sábado (26) e domingo (27).
Porém, o realizador sempre volta ao município da Fronteira gaúcha, onde estão seu pai, Sapiran Brito, diretor de teatro que foi assistente de direção de Teixeirinha, e sua mãe, a atriz e artista plástica Marilu da Luz. Foi a eles que dedicou seu prêmio de direção em Gramado.
O cineasta dirigiu e roteirizou curtas como "Aos Pés" e "O Sabiá". Estreou em longa-metragem em 2011 com o drama "O Guri". Em 2015, lançou o documentário "Glauco do Brasil" (39ª Mostra SP). No ano seguinte, lançou a comédia "Em 97 Era Assim" (Melhor Filme do Festival Seattle), que já tinha o menino Fredericco Restori no elenco.
Em 2017, lançou o documentário "A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro" no Festival do Rio. Já o drama histórico "Legalidade" estreou em 2019. Para o Canal Curta!, realizou ainda os documentários “Grupo de Bagé” (2018) e “Trinta Povos” (2020).
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Além de “Hamlet”, que ainda não tem data de novas exibições públicas definidas, o bajeense está finalizado outro longa, “Arte da Diplomacia”, com personagens como Tarsila do Amaral, José Morais, Portinari, Di Cavalcanti, Lasar Segall, Volpi, Cícero Dias e Burle Marx e rodado também na Europa. Outro desafio nos planos do artista é estrear na direção de teatro, em 2024, com a peça “A caçada”, de Evaldo Mocarzel, e Ítala Nandi no elenco. A estreia nacional deve ocorrer em Porto Alegre.
Ainda na noite de premiação do 51º Festival de Cinema de Gramado, Zeca Brito destacou em sua fala o papel do Carnaval, da alegria e da Antropofagia para a cultura brasileira. Ele, que sai da Fronteira com o Uruguai, talvez seja o cineasta gaúcho que mais entrada tenha no restante do país, depois de Jorge Furtado.
“Um tropicalista de Bagé” é o termo cunhado a ele pela professora Fatimarlei Lunardelli na edição de dezembro de 2018 na revista Teorema, depois no site Escrita Crítica e, enfim, registrado no livro “50 Olhares da Crítica sobre o Cinema Gaúcho” (ACCIRS, 2022).
Sem nem ter chegado aos 40 anos, o realizador já marca seu lugar na política cultural e na cinematografia do país, e faltava o reconhecimento do festival nacional mais antigo ininterruptamente para coroar essa trajetória. Gramado estava em dívida com sua obra e, depois dos cinco Kikitos, resta esperar por um título de Zeca Brito na mostra de longas brasileiros – que seja num futuro próximo!
Fredericco Restori e os fantasmas de 2016
Além da enorme bagagem cultural, outra característica que chama a atenção na carreira do diretor Zeca Brito é sua capacidade de articulação. “Hamlet” é 100% independente, não contou com financiamentos, mas tem nos bastidores profissionais respeitados.
O longa é resultado da consolidada dobradinha do realizador com Frederico Ruas, que nesta ficha técnica assina produção e roteiro. O kikitado montador Jardel Machado Hermes também é uma parceria antiga, assim como o diretor de fotografia Bruno Polidoro.
Rita Zart, responsável pela trilha sonora original (e premiada na mesma mostra por outro título, “Céu Aberto”), também já tinha trabalhado com o cineasta antes – assim como Tiago Bello, no Desenho de Som, que levou o Kikito em 2022 por “Casa Vazia” e venceu a categoria no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro nesta quarta-feira (23) por “Marte Um”.
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Na produção executiva da obra premiada em Gramado, ainda estão creditados Clarissa Virmond e Tyrell Spencer (de “Cidades Fantasmas”, 2017). Mas talvez as conexões artísticas mais longevas do diretor presentes em “Hamlet” ainda sejam o ator Fredericco Restori e o pensador Jean-Claude Bernardet, que vêm da comédia "Em 97 Era Assim" (2016).
Zeca conhece Fredericco sendo espectador do grupo performático Falos & Stercus, que era dirigido pelo pai do menino, Marcelo Restori. “Eu tive a oportunidade de, em alguns momentos, documentar as peças, logo no seu início como ator, aos sete ou oito anos de idade. Uma relação de amizade e de afeto que nasce com o convívio com o Falos & Stercus e depois se desenvolve e se aprofunda com o ‘Em 97 era assim’, em que ele tinha 13 anos, interpretando um personagem de 15”, narra.
O diretor ainda conta que a participação de Fred Restori também em “Legalidade” (2019) é uma homenagem: “Ele faz o técnico que liga os cabos do rádio, porque o avô dele foi o técnico de som da Rádio da Legalidade”. Em função dessa proximidade, é que a equipe entra em contato com a ocupação em que o aluno está no Instituto de Educação, na avenida Osvaldo Aranha, ao lado do Parque da Redenção, ponto emblemático de Porto Alegre.
Já o escritor e ator Jean-Claude Bernardet estava na capital gaúcha em abril de 2016 para um evento com críticos do estado e é convidado pelo cineasta para ir ao colégio em função das oficinas de arte que estão sendo realizadas. “Íamos exibir o ‘Hamlet’ de Cristiano Burlan, em que ele faz o fantasma, e comentaria. Isso nem entra no filme”, esclarece o bajeense.
O longa de 2014 de Burlan era uma livre adaptação da tragédia de William Shakespeare. A releitura atual da equipe gaúcha fala da geração secundarista frente ao Golpe Parlamentar dois anos depois. “A questão toda da relação da podridão da Dinamarca corrupta tomada por parasitas é a que a gente tenta estabelecer com o processo golpista de Impeachment da presidenta Dilma no Brasil”, completa Zeca Brito.
O cineasta analisa: “Acho que o Jean-Claude traz uma reflexão importante para o filme, de que as teorias precisam vir da observação das ações, e não o contrário (aplicar uma teoria a partir de um ideário do que seria uma sociedade melhor). Porque a perspectiva de quem está definindo o que é melhor ou é pior é sempre elitista e distante da realidade”.
Para Zeca, a lição dos movimentos secundaristas - quem entende de estudante é o próprio estudante - não foi aprendida: “Relacionando com o agora, percebo que a classe política, pelo menos em um cenário local, não pratica a escuta com os estudantes. Aquilo tudo ali que a gente viveu em 2016 não foi compreendido, pelo modelo que segue sendo adotado. Há uma anestesia neoliberal que distancia as ações.”
No longa, a urgência pelo diploma faz com que o inimigo do estudante seja o próprio estudante. “Quem está preocupado com os próximos 50 anos passa a ser o vilão”, observa o diretor.
Com uma fotografia em preto-e-branco e uma câmera atuante (na esteira de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, lema do Cinema Novo no Brasil), a obra com a qual Zeca Brito gostaria que seu “Hamlet” fosse comparado é “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha. “É um filme de enfrentamento, de relação direta da câmera com a ação.”
Edição: Katia Marko