Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | 'Terra à vista': genocídio, pilhagem e devastação ambiental

'Basta um passeio no Parque Harmonia e uma leitura do projeto para ter a dimensão do estrago proposto'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"É de se espantar que uma empresa especializada em construir prisões - considerada a número 1 em edificações prisionais - esteja responsável pela arquitetura do "novo" Parque Harmonia?" - Foto: Gabriel Poester

Éris foi resgatada do universo grego para nominar a nova cepa do vírus covid. Por coincidência ou não, o historiador Francisco Marshall utiliza essa mesma figura mitológica - irmã e oponente de Harmonia - para  escrever excelente artigo sobre a devastação do Parque Harmonia e sua relação com interesses econômicos escusos.

:: 'O governo municipal, que apoiou Bolsonaro, também é negacionista da destruição ambiental', afirma Paulo Brack ::

Em ambos os casos, um nome simbólico e apropriado como síntese de desarmonia e devastação e que nos convida a estabelecer relações entre tudo o que estamos a viver.

Pensemos no brutal assassinato da líder quilombola Mãe Bernadete, na Bahia, e no atentado a tiros na comunidade indígena Xokleng Konglui, aqui em São Francisco de Paula/RS. Pensemos em como essas violências se conectam numa intrincada rede de poder em que o Estado Democrático de Direito nunca chega nos mais pobres e nas comunidades indígenas e quilombolas.

Até quando?

Nessa versão pós-moderna do antigo sistema colonial os grandes impérios capitalistas usam nova roupagem para disfarçar a Trindade do Deus Mercado em terras semicoloniais - genocídio, pilhagem e devastação ambiental.

O pacto pela destruição permanente

Em seu catecismo eclético - pois sempre foi camaleônico e dissimulado - o que interessa ao Deus Mercado é o lucro seu de todo dia. Ora defendendo regimes políticos ditatoriais, ora defendendo democracias burguesas, nos faz pensar no personagem Fausto na obra de Goethe (1749-1832).

Considerada a Ilíada da Modernidade burguesa, a tragédia do desenvolvimento, Fausto em sua sede inesgotável acaba por pactuar com Mefistófeles e o que de fato se impõe tragicamente é a destruição do passado como condição imutável rumo ao "progresso".

:: Artigo | 'Suspende, suspende, suspende' ::

Se formos pensar na mentalidade de desenvolvimento contida no documento assinado por entidades empresariais a favor da continuidade das obras no Harmonia temos uma versão patética do drama faustiano, desprovida do refinamento do personagem em questão.

Assim também pensa o prefeito Melo, cujo texto do jornalista Juremir Machado da Silva (As metamorfoses de Melo) refaz os caminhos que levam Sebastião a se transmutar no Melo privatista e ecocida.

Projeto "Éris": de Harmonia à Prisão

É de se espantar que uma empresa especializada em construir prisões - considerada a número 1 em edificações prisionais - esteja responsável pela arquitetura do "novo" Parque Harmonia?

Em seu afã desenvolvimentista, o prefeito Melo aproveitou-se do período pandêmico - novamente Éris em ação - para estabelecer um dos negócios mais lucrativos e obscuros, segundo o JornalJá.

Por outro lado, basta um passeio no Harmonia e uma leitura do projeto para ter a dimensão do estrago proposto.

Disfarçado de parque temático da cultura gaúcha, o parque-prisão é um caça-níquel cultural, ambiental e historicamente de uma pobreza escandalosa.

Nele, os ecossistemas que levaram décadas para abrigar cerca de 85 espécies de aves e mais de 1.000 árvores darão lugar a um shopping a céu aberto, com dezenas de lojas e restaurantes para a população que não tem grana passar reto e com alguns espaços temáticos totalmente fakes, num lugar que reproduz o que de pior nos ensinou a lógica antropocêntrica.

:: MP/RS recomenda que Prefeitura de Porto Alegre não libere eventos no Parque Harmonia sem controle de ruído ::

Na contramão dos debates atuais sobre a finitude do planeta, esperamos que esse parque-prisão não vingue.

E para que não prospere esse parque-prisão e outros projetos que atacam comunidades como as do Lami, Belém Novo, Morro Santana entre tantas da cidade - é preciso deixar de olhar somente para os quintais da Porto Alegre branca.

São as comunidades indígenas, quilombolas e periféricas, as guardiãs e herdeiras de nosso passado de luta e resistência. E é desde esse passado que elas apontam para outros futuros, de superação do Deus Mercado.

* Professora de História, escritora, da coordenação do Projeto PoAncestral – Muito além de 250 e integrante dos Coletivos Preserva Redenção e Parque Harmonia.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Katia Marko