A capital brasileira que já foi considerada a cidade das árvores, nos últimos anos tem perdido este título. Porto Alegre teve a primeira Secretaria Municipal de Meio Ambiente do país. Aconteceu em 1976. Mas hoje vive uma queda de braço entre privatização e defesa ambiental. O episódio mais recente envolve o Parque Harmonia, próximo a orla do Guaíba, um dos cartões postais de Porto Alegre, devastado com a derrubada de mais de 400 árvores.
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Brasil de Fato RS conversou com Paulo Brack, mestre em Botânica e coordenador do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá, sobre a realidade que perpassa a capital gaúcha.
Paulo Brack também é doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar e professor titular do Departamento de Botânica da Ufrgs. Coordenador do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá é ele quem representa a entidade no Conselho Estadual do Meio Ambiente/RS.
Brasil de Fato RS - Temos hoje o caso do Harmonia, mas, nos últimos anos, são relatados muitos casos de cortes de árvores ou podas inadequadas pela prefeitura. Como vê essa situação?
Paulo Brack - É um processo de descontrole total. Vemos que os próprios técnicos da Secretaria de Meio Ambiente estão cada vez em menor quantidade, enquanto a prefeitura terceiriza os serviços. E as concessões vão na mesma linha, de deixar para que os concessionários, os serviços privados, acabem fazendo o serviço da própria prefeitura. Obviamente os terceirizados, os concessionários não têm o mínimo interesse em manter a vegetação. Ao contrário, os espaços públicos são utilizados para benefícios econômicos.
A cidade se torna um grande espaço comercial e perde qualidade de vida para a população
A gente vê isso nas ruas também. Nas esquinas surgem, em poucos dias, gigantescas farmácias. Onde tinha uma arborização ali na esquina, sumiram as árvores. Porque, simplesmente, o dono do empreendimento não quer que a árvore esconda aquela fachada iluminada e tal. Então, a cidade se torna um grande espaço comercial e perde qualidade de vida para a população.
BdFRS - Aliás, Porto Alegre foi a primeira capital do país a ter uma secretaria de meio ambiente.
Brack - Entre 1976/77 surgiu a primeira secretaria e, também, a primeira reserva biológica municipal. Trabalhei na Reserva Biológica do Lami na década de 1990. São questões que estão muito distantes daquilo que a gente conquistou. O movimento ambientalista lutou muito contra as podas e os cortes de árvores. Só que o ritmo que a prefeitura atual está imprimindo é gigantesco.
A gente esperava que o Ministério Público também se pronunciasse pela proteção, mas está difícil. Quem poderia obrigar como compensação a todas essas desgraças que estão ocorrendo na cidade é o MP. Deveria obrigar o município a se adequar, se reestruturar para poder dar conta desse descalabro todo que a gente está vendo na cidade. O quadro não é dos melhores.
Estão fatiando cada vez mais os espaços públicos para grandes empreendimentos
Mas sabemos que há o desgaste do governo também. Gostaríamos que fosse pedagógico, que retrocedesse e tal, mas foram tantos os retrocessos... Recentemente, por exemplo, foi entregue o parque Saint Hilaire para Viamão que já está usando uma área de 1.200 hectares e, pelo menos, 80% dessa área foi entregue para o município que está descaracterizando aquela área.
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Parques como os da Redenção, Marinha do Brasil, Moinhos de Vento, Harmonia, tinham técnicos gestores de cada um. Hoje não tem mais. Estão fatiando cada vez mais os espaços públicos para grandes empreendimentos. Aí a gente vê a contradição. O governo municipal diz que está com um plano de combate às mudanças climáticas e estimula estacionamentos... No Harmonia tem estacionamento para 1,5 mil automóveis. Por que tirar 300 ou 400 árvores num parque? São interesses econômicos imediatistas.
BdFRS - Quando falamos de fauna e flora, como descreveria a Capital?
Brack - É triste a gente ver que o modelo de concessão que está sendo previsto para a orla do Guaíba. É uma coisa mirabolante também. Com muito cimento, muito concreto, muito pavimento.
Surgiram dados, até de pesquisas internacionais, dizendo que, com as mudanças climáticas, algumas cidades estão tendo um número de doenças e até de mortes decorrentes de elevada temperatura e que isso poderia ser diminuído com a manutenção da vegetação. Ou seja, a ausência de vegetação aumenta em mais de 30% o número de mortes. Na Europa está ocorrendo.
Desde 2016 estamos procurando as árvores que a prefeitura plantou no Harmonia
BdFRS - Há árvores que foram suprimidas, árvores que tinham mais de 40 anos...
Brack - Sim. Eles dizem que vão plantar 1,9 mil. "Vamos cortar 430 e vamos plantar 1,9 mil, vai ter um benefício". Eles usam o termo ´benefício`. Em 2013, houve uma mobilização muito grande contra o corte de 115 árvores ali (junto à usina do) Gasômetro, prenderam jovens e tal. Aí o município, em 2016, fez o plantio de algumas centenas de árvores como compensação daquele corte. Sessenta mudas foram plantadas no Harmonia. Estamos procurando até hoje onde estão essas mudas. A prefeitura e a secretaria não sabem onde foram plantadas...
Eu diria o seguinte: essas 1,9 mil que estão dizendo que vão plantar, primeiro, a gente questiona: onde vão plantar? Está tudo acimentado. Não dão espaço para plantio. E, em segundo lugar, não tem controle.
Então, há muita fake news. Uma prefeitura que trabalha com muito marketing, a grande imprensa ajuda, alguns âncoras da grande imprensa acabam fortalecendo essa visão neoliberal.
Tínhamos, pelo menos, 85 espécies de aves. Nem se sabe para onde foram
BdFRS - Que impactos isso traz?
Brack - Tínhamos comentado a questão das ilhas térmicas. São áreas de cimento, concreto, no caso, até pavimentos, até a própria brita que estão colocando. Dizem que a brita é permeável, que não é asfalto. Mas a brita absorve muito calor do sol e isso traz para o local uns dois ou três graus a mais. Além disso, vamos ter menos verde, menos área para habitat para as aves. Tínhamos, pelo menos, 85 espécies de aves que, agora, deve ter se reduzido muito. Nem se sabe para onde foram. Não houve um estudo de impacto sobre isso também.
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Diria que a arborização ajuda também a um certo anteparo para os ventos muito fortes que vêm do Guaíba. Quanto menos árvores tivermos, mais ventos fortes e os ciclones vão ter um efeito maior na cidade, com queda de mais árvores. Aquelas cortinas de árvores que existiam ali, elas também serviam de anteparo para esses ventos.
Mas a cidade está perdendo tudo meramente e infelizmente por uma questão de negócio
É uma série de situações que não foram estudadas. A vegetação também ajuda a filtrar os poluentes do ar, ajuda a diminuir a poluição sonora e fixa o carbono. Mas a cidade está perdendo tudo meramente e infelizmente por uma questão de negócio. Alguns desses empreendedores - no caso o próprio concessionário do Harmonia - são doadores de campanha para o próprio prefeito. Verificamos a doação de campanha dessas empresas para os candidatos, provavelmente isso vai acontecer o ano que vem.
Existe um círculo vicioso em que as empresas que ganham essas concessões vão acabar - não CNPJ mas CPF, os donos das empresas - vão acabar doando. O que torna ainda maiores os recursos de propaganda para anunciar uma cidade falsa.
BdFRS - Para além do Parque Harmonia que outras ameaças pairam sobre Porto Alegre?
Brack - O trecho 1 da orla do Guaíba faz parte dessa concessão. E vai haver mais impermeabilização e sabemos que tem aves da beira do Guaíba, tartarugas, tem uma fauna ali, típica da orla, que vai ser impactada.
Vamos reivindicar, até do ponto de vista jurídico, as ações. Não fomos nós da Ingá que entramos com a ação, mas apoiamos e, provavelmente, vamos entrar com algumas ações para que aquela orla do Guaíba, com área de preservação permanente, seja mantida.
Além do Harmonia, temos o Marinha do Brasil. Existia também a possibilidade - não sei se isso foi descartado de parte da prefeitura - da orla do Lami também ser concedida. E a Redenção faz parte também do pacote. A gente sabe que a Secretaria de Parcerias é chefiada pela Ana Pellini, uma inimiga mortal dos ambientalistas. Está na chefia dessa secretaria que justamente faz esse serviço de entrega total do nosso patrimônio público das áreas verdes para os concessionários.
Os pequenos vendedores que circulam nesses parques vão ser excluídos
BdFRS - Na Redenção, tem a questão que é um patrimônio...
Brack - Sim, é um patrimônio histórico, cultural, natural e paisagístico de Porto Alegre. O prefeito atual (tem) uma ingerência política dentro do Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural da cidade. Inclusive, foi colocado um container ali, há cerca de 10 dias, e o conselho tinha se pronunciado contrário. Mas o prefeito (Sebastião Melo) foi lá e disse: ´Não, quero que seja permitido senão eu vou mudar o conselho.'
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No caso da Redenção foi encaminhado, pelo grupo Coletivo Preserva a Redenção, que reúne algumas dezenas de pessoas e algumas entidades, uma reivindicação ao IPHAN, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Se (o parque da Redenção) for enquadrado como um patrimônio também federal fica mais difícil.
BdFRS - Tem também a discussão sobre parques públicos e parques privados, e que se relaciona com a questão da gentrificação...
Brack - Sim, é claro. Os pequenos vendedores que circulam nesses parques vão ser excluídos. Só os grandes comerciantes vão manter esse espaço. Por exemplo, no Refúgio do Lago (Redenção), um vendedor de pipoca, não vai poder entrar. Então aqueles vendedores, até do algodão doce, eu me lembro quando eu era criança, a gente comia algodão doce lá na Redenção, é uma coisa assim que faz parte da nossa memória afetiva... Esses pequenos comerciantes, ambulantes, vão ser excluídos.
Vamos reivindicar que a justiça se pronuncie porque os crimes ambientais não prescrevem
Isso é uma gentrificação sim. Provavelmente as pessoas que não têm dinheiro para consumir na escala que eles pensam, não vão ter nem condição de entrar.
Ali no Refúgio do Lago já tem seguranças, já te olha se você está mal vestido, etc. É uma área pública, um orquidário. Perdeu-se esse patrimônio das orquídeas que morreram lá no viveiro. Tem esse crime também de negligência. Essa questão das orquídeas que foram abandonadas no viveiro municipal e que foi também abandonado ainda será alvo de ação judicial. Vamos reivindicar que a justiça se pronuncie porque é um crime ambiental e os crimes ambientais não prescrevem.
BdFRS - Voltando à questão do Harmonia: a empresa (concessionária) disse que vocês manipularam as fotos...
Brack - Estamos avaliando a situação, no sentido de que houve uma acusação aos movimentos em relação à alegação de que foram manipuladas as imagens. Mas a única coisa que se fez lá foi tirar fotos com drone daquilo que a gente já sabia. Revelou uma situação que estava, talvez, um pouco escondida, até porque eles já estão colocando até tapumes em volta do parque, talvez para esconder um pouco esse descaso todo.
Estamos cobrando de parte do Ministério Público uma posição mais dura com relação a algo que a gente considera como crimes ambientais. Entregamos documentos para o MP com fotos de várias situações de descaso total. Agora estão colocando um cercado em volta das árvores porque nós reclamamos. Mas era o caso de ter sido multada a empresa. Inclusive uma empresa que atua dessa forma tinha que ter a sua concessão sujeita a ser cancelada, pela forma negligente ou até criminosa com que executou aquela destruição toda.
BdFRS - Como conciliar a revitalização, o desenvolvimento da cidade com a proteção ambiental? Tem como?
Brack - O desenvolvimento que se quer é mais verde. Por exemplo, não avançar na zona Sul da cidade. O que a prefeitura está fazendo hoje? Ela está permitindo e facilitando que a cidade se expanda para áreas rurais e naturais lá na zona Sul. O Arado Velho, que também foi um empreendimento polêmico, não tem condição nenhuma para urbanização lá. Vai ter que levar asfalto, linhas de poste com transmissão de luz, sistema de esgoto, água. A gente sabe que tem muita oferta de casas na cidade. Porto Alegre é, talvez, a capital do Brasil que menos cresce em população. Ao contrário, até diminuiu em 5% a sua população nos últimos 12 anos.
:: Fazenda do Arado exemplifica ‘extrativismo sem limites’ em Porto Alegre ::
Não dá para entender a expansão de mais e mais empreendimentos imobiliários para a zona Sul, principalmente. Até porque o deslocamento até o centro da cidade implica que os automóveis vão rodar durante 45 minutos ou até uma hora, todos os dias, para o Centro. E depois um retorno, liberando gases poluentes, gases de efeito estufa. O Sul de Porto Alegre tinha tudo para ser uma zona para empreendimentos e atividades agroecológicas e também para manter áreas naturais, até com turismo ligado à natureza. Para trazer um outro tipo de desenvolvimento que não seja esse de expansão de concreto, de habitações, que muitas delas vão ficar vazias, só para fazer negócio.
A prefeitura deveria incentivar (o uso de imóveis) na área mais central da cidade e outros bairros, como Navegantes, para que houvesse uma reocupação desses imóveis, muitos deles ociosos, onde já tem infraestrutura. Tem linha de ônibus, tem luz, tem tudo. Mas esses imóveis foram, ao longo do tempo, perdendo valor e muita gente foi morar no Sul da cidade porque tinha mais verde. Só que, quanto mais gente for para lá, menos verde vai ter. O mesmo modelo de ocupação, com corte de vegetação, é uma enorme contradição para uma cidade que diz ter um plano de enfrentamento às mudanças climáticas.
BdFRS - E o governador Eduardo Leite quer conceder o Jardim Botânico para a iniciativa privada...
Brack - Essa é outra situação. Já houve concessões para o parque de Canela, por exemplo. E olha só, no parque de Canela hoje, o valor da entrada está em R$ 75. É uma das sete maravilhas do Rio Grande do Sul, aquela Cascata do Caracol. Existe uma privatização evidente.
Se o Jardim Botânico for concedido o preço da entrada vai, provavelmente, quintuplicar
No Jardim Botânico, hoje a entrada é R$ 6. Se for também concedido, provavelmente esse valor vai quintuplicar. Vai virar R$ 30. E ali vão ter empreendimentos que não necessariamente serão atividades ligadas à botânica. A botânica tem que destacar as plantas que existem lá, mais o desenvolvimento da pesquisa, educação ambiental etc.
Peguei o projeto da concessão do Jardim Botânico e encontrei 103 vezes a palavra consumo. Então, eu fiquei chocado. O modelo de concessão incentiva o consumo. Hoje, num planeta que a gente está tentando diminuir a nossa carga, o nosso peso, a nossa pegada ecológica, diminuir o máximo possível, você incrementar consumo é um contrassenso, mas faz parte do modelo. O modelo neoliberal é isso, é fazer girar uma economia de esgotamento dos recursos naturais e da capacidade do planeta de se recuperar de tanto impacto.
As pessoas têm que se dar conta de que a prefeitura está se desfazendo do seu papel de agente público
BdFRS - Uma mensagem final?
Brack - A cidadania de Porto Alegre tem que estar atenta. Agora, passando aqui no Centro, vi as paradas de ônibus com filas gigantescas. O transporte público também foi sucateado. As pessoas têm que se dar conta que a prefeitura atual está cada vez mais se desfazendo do seu papel de agente público. Fazendo concessão da Carris, e o DMAE agora também sendo alvo de privatização. Isso tudo vai encarecer os serviços e, ao mesmo tempo, precarizar. Teremos menos serviços, menos ônibus, menos atendimento público.
Em nível estadual, temos a CEEE Equatorial. A Equatorial, que ganhou a concessão, está sendo multada porque não consegue atender da forma com que a CEEE fazia.
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Porto Alegre precisa sofrer uma pressão, a prefeitura atual, para que não se permita mais tanta abertura de privatizações. Obviamente, isso vai ter que se dar na eleição do ano que vem. Não é questão partidária nem nada. Mas esse governo atual, que apoiou Jair Bolsonaro, é um governo negacionista das mudanças climáticas, da destruição ambiental e é também negacionista dos direitos da população.
Acho que está chegando o esgotamento da paciência. O que nos chama a atenção é como a população de Porto Alegre é tão pacífica ao tolerar tanta destruição dos serviços públicos.
Edição: Ayrton Centeno