Foi uma ocupação das mais tranquilas. Os trabalhadores tinham convite e até crachá no pescoço. Mas não por isso o movimento perdeu sua força ou beleza.
A chegada de uma comitiva grande no QG (Sociedade Recreio Gramadense) do 51º Festival de Cinema de Gramado no final da manhã de quinta-feira (17) chamou a atenção do local. Foi um ônibus cheio e alguns carros, disse Vicente Willes, do MST: “É um marco neste território. Estamos emocionados, nós Sem Terra, aqui dentro do Festival.”
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A ansiedade e alegria grande também eram demonstradas por Fernando Aristimunho, da Coordenação do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, que traz essa caravana de povos indígenas, quilombolas, assentados da Reforma Agrária e pecuaristas familiares da Pampa para estar na Serra acompanhando a estreia de “Sobreviventes do Pampa” no Palácio dos Festivais à tarde, concorrendo na Mostra de Longas Gaúchos.
Aristimunho reforçou que os integrantes da caravana que “invadiu” Gramado, desta vez bem recebidos, participaram como “atores e atrizes”, deram entrevistas ao documentário e tinham assistido anteriormente apenas o trailer do filme. “Estamos muito felizes de estar aqui, é uma celebração das nossas lutas de resistência, por terra, por território, por cuidar desse ambiente, desta casa que é a pampa”, explicou a liderança.
Ele também explicou que a palavra central do longa é conjugada no masculino – assim como está no título da obra – quando a referência é ao bioma, com a pauta ambiental. Já a pampa, no feminino, é uma palavra afetiva, tendo a ver com identidade: “A terra, a nossa mãe, a casa dos povos”.
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Willes também destacou a essência do longa: “É simbólico para nós trabalhadores do campo, da agricultura familiar, da Reforma Agrária, assim como tem quilombolas, indígenas, ciganos – todo esse público menos expressivo na sociedade atual, que não tem muita representação. O filme traz essa reflexão: existe um problema ambiental no bioma pampa, mas também existe um problema social. Porque existe uma população lá que vive e sobrevive desses territórios e está sendo ameaçada por um modelo econômico vigente no nosso país, pela questão do avanço da soja, das mineradoras, de outros cultivos. Para nós do MST, tem um significado especial, que estamos agregando essas bandeiras aí e fazendo a defesa dos nossos territórios”.
O representante do MST também frisou a importância de serem chamados a dar este testemunho, pois vivem da agricultura, focada na diversidade e subsistência e criando animais.
“Resistiremos até o fim. O Pampa somos nós”
Assim como, no ano passado, na Mostra Gaúcha de Longas, “Campo Grande é o Céu” trouxe uma grande caravana quilombola para ocupar o palco antes da exibição, a mesma tomada do espaço ocorreu antes da projeção de “Sobreviventes do Pampa”. Com plateia e palco cheios, a faixa erguida “Resistiremos até o fim. O Pampa somos nós” ganhou enorme visibilidade em um local que se vê branco e europeu.
Igualmente, a sala de debates após a sessão também ficou cheia. As falas eram de reconhecimento: “O Estado nos nega terra, direitos expressos em legislação. Precisamos dessa visibilidade para resistir, a gente precisa viver”, completou Aristimunho.
Mariglei Dias, do Quilombo Rincão da Chica, em Rosário do Sul, afirmou: “Só gratidão, agradecer a vocês. Importante é a gente falar sobre nós, os nossos fazeres, os nossos direitos, o que nós queremos, chega de outras pessoas virem dizer o que é melhor pra nós”.
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Filmado em Santana do Livramento, Uruguaiana, Alegrete, Bagé, São Borja, Quaraí, Dom Pedrito, Santa Maria, Rosário do Sul e Barra do Ribeiro, com fotografia de Lívia Pasqual e direção de Rogério Rodrigues, o documentário chama a atenção para as falas e as paisagens sonoras e visuais.
A produtora e roteirista Rose França apresentou o título destacando que ele foi feito com muita escuta, e que a intenção é que ela seja reverberada: “Com estreia em Gramado, o documentário seguirá ainda por um circuito de festivais, que precisam de um certo ineditismo. Depois, ele vai para onde tiver tela. Este filme pertence a vocês, é uma ferramenta para estar onde vocês quiserem. A comunidade precisa se ver, sim, mas o mundo também precisa”.
Rodrigues avaliou que o que une as pessoas que estão no filme e os que fazem o filme é o amor à terra. “Ele tem também essa obrigação de nos lembrar que estamos desconectados de nossos saberes ancestrais”, opinou.
O diretor relatou a motivação de investigar o tema: “Sou gaúcho de Porto Alegre e não conhecia o Pampa. Fui conhecer em 2019 quando fui rodar o longa Além de Nós e realmente percebi que o pampa é muito latino-americano, não tem fronteiras e estamos ligados realmente com os povos irmãos”. Rodrigues conta que ouviu, na época, de uma pessoa criada na região, a frase “A pampa não existe mais” e isso o marcou.
Então, quis mostrar a degradação do bioma através do olhar das pessoas que habitam o lugar. O cineasta relata que seu avô era de Alegrete, foi a Santa Maria em busca de emprego e conheceu sua avó. Por fim, depois a família chega em Porto Alegre.
“Esse movimento de migração não pertence só à minha família, mas a muitas do Rio Grande do Sul. As cidades do estado são construídas a partir dessa migração de uma raiz que a gente desconhece, que a gente vira as costas. Então eu compartilhei deste olhar junto com a Rose, que é de Roraima, radicada em São Paulo.” Rodrigues ainda informou que deste longa resulta o projeto de uma série, que já está sendo desenvolvida, e terá direção de sua sócia, Rose França.
Edição: Katia Marko