Rio Grande do Sul

Coluna

As periferias no centro das políticas culturais do Brasil atual

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"Precisamos ouvir referências das juventudes e idosos nas quebradas para construir alternativas de enfrentamento em que a integração de cultura e comida no prato se concretize" - Arquivo pessoal
Há urgência em retomar o papel mobilizador da cultura enquanto mecanismo de discussão crítica

A Gira Negra Gaúcha chega a sua quarta edição e se consolida enquanto espaço de reflexão crítica sobre a realidade cultural brasileira contemporânea a partir do olhar sobre as territorialidades periféricas locais de Porto Alegre e RS.

Dia desses houve um bate papo no podcast de Mano Brown com Gilberto Gil acerca da existência dos pontos de cultura, aspecto que abordamos aqui na segunda edição da Gira Negra Gaúcha. O ex-ministro mencionava a importância de tal política cultural implementada no primeiro governo Lula e assinalava ainda diferenças históricas daquele contexto em relação aos dias atuais. Já o líder dos Racionais MCs externava seu desconhecimento acerca da dinâmica dos pontos de cultura.

Acrescento ao que foi destacado nesse encontro do rapper paulistano com o compositor baiano: há a necessidade de uma política cultural mais acessível aos fazedores de cultura localizados sobretudo nas áreas de baixo índice de desenvolvimento humano e isso diz respeito também a desburocratização da instância das inscrições em editais públicos com seus tecnicismos excessivos.

Trata-se sem dúvida de uma barreira a mais, a linguagem "editalesca" e ainda as inúmeras minúcias burocráticas que sem dúvida alguma alijam grande parte dos agentes culturais periféricos do acesso aos recursos públicos na área da cultura.

É sabido que o acesso aos recursos públicos de parte dos agentes de cultura é sem dúvida um modo de enfrentar o analfabetismo político conforme célebre afirmação de Bertold Brecht e, portanto, facilitar o acesso de tais agentes sobretudo periféricos também deve ser uma premissa atual do Ministério da Cultura em sua retomada em 2023. 

Ainda, a fala do ex-ministro e compositor da MPB abria para uma instigante reflexão sobre a diferença de ação político cultural continuada (Pontos de Cultura diante da dinâmica abrangente e democrática do Programa Cultura Viva) ao invés do modelo ação cultural eventual que serve para marketing político ou resolução imediatista de uma demanda cultural de um determinado grupo social localizado.

No entanto, se tal ação eventual aparece desatrelada de uma política cultural continuada, sua eficácia deve sim ser questionada já que pode ser apenas um paliativo cultural diante de uma realidade mais complexa e que necessita de um diagnóstico mais ampliado assim como ações efetivas de política cultural. Consequentemente devemos refletir sobre política cultural estruturante e não somente ações isoladas que são mero apoio financeiro para realização de eventos em grande parte das vezes apenas de propaganda eleitoreira.

Assim um dos desafios para enfrentamento dessa dificuldade é a implementação e/ou fortalecimento de espaços continuados em que se discuta cidadania enquanto política e onde se desenvolvam paralelamente reflexões sobre a disputa de narrativas que enfrentamos hoje. 

Mais: o desafio maior está em construir um mapeamento, o tal diagnóstico mencionado anteriormente, que encaminhe para um movimento articulado em escala ampliada em todo país via Conferência Nacional de Cultura a ser realizada ainda esse ano. Nisso podemos chamar atenção acerca da necessidade urgente de articular estratégias de descentralização dos recursos destinados à cultura via afirmação da diversidade cultural desse enorme Brasil não se restringindo a RJ e SP, que abarcam maior parte dos recursos destinados à cultura nesse país ainda hoje. 

Nesse sentido, os atuais editais da Retomada Funarte já vêm buscando corrigir tal distorção histórica. Hora de colocar as periferias no centro da política cultural, efetivando assim um Brasil diverso porque constituído em sua base e alicerce pelos povos originários, negros, mulheres, população LGBTQIA+, pessoas com deficiência, etc.

Desse modo, movimentos de base política na quebrada fazem-se necessários e podemos exemplificar destacando não só os pontos de cultura, mas também a comunicação livre ou ainda o movimento hip hop com seus acertos e contradições, mas que inegavelmente constituem estratégias de enfrentamento a certo neopentecostalismo em seu fundamentalismo alienante centrado no conforto espiritual sem reflexão sobre questões sociais.

Ao contrário, muitas vezes reafirmando conservadorismo via pauta de costumes e espalhando narrativas tendenciosas nas redes sociais com intuito de desestabilizar o cenário político. Só ver o que vivenciamos nos últimos anos através das práticas do gabinete do ódio e que tem no 8 de janeiro passado um exemplo nefasto do que a naturalização de tais práticas pode trazer enquanto consequências que põem em risco sobretudo a permanência da democracia.

A Gira Negra Gaúcha ao chegar a sua quarta edição consolida-se como espaço de circulação livre de conteúdos via web. E alerta para a necessidade de fortalecimento de ações culturais estruturantes que disputem espaço com outros agentes sociais que propõem narrativas falaciosas via fake news constantemente na contemporaneidade e eis aí mais uma faceta do fascismo atual. 

A proposta, portanto, é exercitar uma narrativa de dentro para fora, pensar sobre a realidade a partir da vivência periférica e não ter uma visão única, mas antes produzindo pensamento de respeito à alteridade em consonância com as grandes revoluções dos costumes nos últimos anos e materializando a efervescência cultural a qual permeia a realidade das periferias desse país.

Podemos citar aqui Restinga, Serraria, Vila Nova, Bom Jesus, Rubem Berta, Cristal, Complexo da Vila Cruzeiro em Porto Alegre, ambos territórios ricos de cultura e com sérias dificuldades no enfrentamento ao modelo econômico vigente que acirra a desigualdade social e a consequente degradação ambiental.

Desse modo, é preciso discutir mudanças no capitalismo que se engendra como único modelo econômico de gestão coletiva possível, assim como a soja em analogia com o agronegócio em seu modelo predatório da biodiversidade, ambos incapazes de distribuir riqueza de modo mais ampliado.

Há urgência em retomar o papel mobilizador da cultura enquanto mecanismo de discussão crítica e que represente alternativas no espectro político contemporâneo. Nisso, dentre outras coisas, ouvir referências das juventudes e idosos nas quebradas para construir alternativas de enfrentamento em que a integração de cultura e comida no prato se concretize, possibilitando entendimento e posicionamento crítico frente à realidade que se transforma e acirra desigualdades a cada nova conjuntura do capital.  

Confira também o Podcast Gira Negra Gaúcha #04

Locução: Richard Serraria e André de Jesus

Participação especial: João Pontes

Trilha sonora: Os Tincoãs (remix Millemond - electronic / world music), Pachamama Revolução (Richard Serraria feat Duke Jay), Duke & Nego Preto (Bataclã FC), Avante (Sirilo da Fusão & DJ Abú)

Gravado e editado por Richard Serraria no Centro Cultural Lunar do Sopapo

* André de Jesus, Ator/Ponteiro de Cultura, Locutor, ArteAtivista e Produtor Cultural.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko