Importante lembrar que as primárias não definem as eleições e sim quem vai disputar o pleito
No domingo, 13 de agosto deste corrente ano, ocorreram as eleições primárias na Argentina. A coalizão liderada pelo economista ultraliberal Javier Milei recebeu 30,0% dos votos. O resultado “surpreendeu”, porque nas eleições provinciais em que o partido Libertad Avanza concorreu, terminou por sofrer derrotas enormes. Já a coalizão da direita (composta pelo PRO somado a maior parte da UCR), denominada “Juntos por el Cambio”, saiu em segundo lugar, com 28,3% da votação. Em terceiro chegou o oficialismo, com duas candidaturas, totalizando 27,3% dos votos.
Os ultra-liberais liderados pelo midiático Milei – um economista e operador do mercado de capitais que já foi o mais entrevistado do país por cerca de três anos consecutivos – não tiveram disputas internas. Sua candidata a vice é deputada nacional como ele, e esta é a formação da bancada da extrema direita de linha chilena, com discurso que oscila entre Trump e Bolsonaro. As internas mais duras foram as da direita, com elementos de ultra direita. O prefeito da Cidade Autônoma de Buenos Aires (CABA, capital federal), Horacio Rodríguez Larreta, perdeu a primária para a ex-ministra de segurança de Mauricio Macri, Patrícia Bullrich (a diferença foi de 17,0% para 11,3% respectivamente).
Já no peronismo que participa do atual governo, a interna foi favorável ao atual ministro de Economia, Sergio Massa (ex-prefeito do município de Tigre e ex-candidato a presidente em 2015), com 21,4% dos votos, que ganhou da esquerda cristã de base peronista, liderada por Juan Grabois, que registrou 5,9% dos votos. Este segundo fez dobradinha com Paula Abal Medina, cujo sobrenome carrega consigo o peso do tio mártir da resistência e do pai que foi secretário de Perón e trabalhou junto ao breve período de Héctor Cámpora na Casa Rosada. Já Massa, tem como vice a Agustín Rossi, ex-diretor da Agência Federal de Inteligência (AFI, sucessora da mal afamada SIDE) e, no presente, chefe de gabinete ministerial do presidente Alberto Fernández.
Duas votações minoritárias foram para o peronismo das províncias, em Juan Schiaretti – atual governador da importante província de Córdoba – com 3,8% dos votos nacionais. Por esquerda, a frente eleitoral trotskista (uma delas) somou 2,7% das preferências, indicando Myriam Bregman como candidata escolhida a concorrer no primeiro turno.
No maior colégio eleitoral e mais importante território, a Província de Buenos Aires, o atual governador e ex-ministro de Economia de Cristina Fernández de Kirchner, Axel Kiciloff, ganhou com 35,6% dos votos, 10 pontos à frente das duas listas de Juntos por el Cambio e 14 pontos adiante da candidata da extrema direita, Carolina Píparo. Desta forma, a capital e o conurbano bonaerense não deram a vitória para Milei nem para seus prepostos, se tornando a grande possibilidade da virada, já que Milei ganhou em 16 dos 24 distritos eleitorais do país.
As dificuldades estruturais da Argentina após o governo de Mauricio Macri
Em junho de 2018, o então presidente Mauricio Macri (líder político de Juntos por el Cambio, fundador do partido PRO, da direita neoliberal e com passado menemista) assinou o acordo junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) que ultrapassa em 127 vezes a capacidade de endividamento do próprio país. Pode ter sido o último de uma série de empréstimos que são assinados desde 1956. É importante lembrar que no primeiro ano do governo de Néstor Kirchner foi decretada uma moratória que abateu mais de 70% da dívida contraída nas administrações anteriores, em especial na desastrosa presidência de Fernando De la Rúa – que termina escapando de helicóptero pelo teto da Casa Rosada, a sede do Poder Executivo argentino. Vale observar que Patrícia Bullrich era ministra também no desastre de 2001.
Os quase 57 bilhões de dólares contraídos junto ao FMI deixaram uma dívida para ao menos duas gerações de argentinos e escasseia as reservas internacionais de uma economia que é bimonetária. Infelizmente, a poupança argentina é praticamente dolarizada e o país depende das safras agrícolas voltadas para a exportação. Com a dívida privada coberta pelo Tesouro Nacional, a falta de empenho do governo de Alberto Fernández em cobrar e coibir o crime financeiro – e a escalada do câmbio especulativo –, e a seca no campo do país (em 2022), as condições de pagamento das parcelas da dívida externa e de financiamento do Estado caíram bastante.
No plano regional, a meta do peronismo oficial é buscar transações bilaterais entre Brasil e Argentina – sem fazer uso do dólar como moeda aduaneira entre os dois países –, assim como estipular bases e acordos que não usem o dólar para estas transações. As relações entre a Argentina e a República Popular da China, com empréstimos em yuans e a possibilidade de pagar parcelas junto ao FMI na moeda chinesa, são outra meta estratégica. Do mesmo modo, são variáveis importantes os acordos do Mercosul junto a União Europeia, tanto na atração de fundos de investimento como na complementaridade de ambas economias. Outro vetor fundamental é a conclusão do Gasoduto Presidente Néstor Kirchner e as possibilidades de uso do gás como commodity de securitização das transações bilaterais com o Brasil, incluindo uma possível fábrica de fertilizantes.
Quase todos os planos estratégicos citados acima são parte da campanha do candidato oficialista Sergio Massa, um operador político de centro-direita, mas com uma inflexão de algum desenvolvimento e reindustrialização. Não há um compromisso público de Milei ou de Bullrich neste mesmo sentido, cuja inflexão é muito mais neoliberal do que o passado recente de Massa e apontam para aumentar a primarização econômica sem entrar no problema da generalização da pobreza e da concentração de renda.
Surpreendentemente, a economia argentina está crescendo, apesar da pressão inflacionária gerada a partir da fuga de dólares (há um PIB inteiro de recursos financeiros da elite argentina em depósitos no exterior). A distribuição de ingressos é baixa, como acusa a presença eleitoral mais à esquerda (notadamente com forças trotskistas, que ultrapassa pouco de 3% do total eleitoral, assim como outras correntes da esquerda eleitoral) e cada vez mais cresce o trabalho informal. A correção deste rumo, buscando um nível efetivo de emprego direto, trabalho vivo e renda em toda a pirâmide social está distante muito em função da crescente concentração empresarial e da pouca efetividade do atual governo (de Alberto) em combater este mesmo fenômeno.
Sempre há uma possibilidade de conspiração jurídico-midiática na política argentina
Por fim, cabe observar a ofensiva legal do sionismo na Argentina. Após os dois atentados da década de 1990 – contra a embaixada do Estado de Israel em março de 1992 e contra a Associação Mutual Israelesen Argentina, AMIA, em julho de 1994 – há um grande constrangimento na realização de críticas contra o sionismo e sua presença imperialista e aliada dos EUA. As operações de Lawfare (emprego da lei como arma de guerra) ganham ainda maior relevância após o misterioso suicídio do procurador Alberto Nisman – que acusava erroneamente a Cristina Kirchner de ser cúmplice ao esconder provas nos inquéritos do atentado da AMIA, em janeiro de 2015.
Não se pode dissociar a derrota eleitoral dos aliados do kirchnerismo neste ano de 2015 com a difusão midiática da campanha de Nisman contra o Poder Executivo. O fantasma da violência política, em um país com mais de 30.000 mortos e desaparecidos durante a última ditadura militar (1976-1983) , esteve presente no atentado contra a vice-presidenta (e ex-presidenta) Cristina Fernández de Kirchner, em setembro de 2022. Os envolvidos diretos estão presos, mas as investigações não avançam e as provas contidas nos celulares foram simplesmente apagadas! Outra demonstração cabal do pouco empenho e contundência do governo Alberto em solucionar os problemas reais e solucionáveis do país.
O jogo está em aberto
* Este artigo foi originalmente publicado no portal Monitor do Oriente Médio
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** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira