A grandeza da existência de Marielle afronta a diminuta moral do genocida
O Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha é um momento para pensar nela: o que diria nessa data? por onde estaria? Ela, que era socióloga e especialista na temática da segurança pública, o que diria ao analisar o documento que confirma o que temos vivido e mensurado através das escutas e dos acolhimentos? que ações, programas e políticas nos proporia? o que construiria com a gente?
De uma ausência que toca nas feridas mais antigas às mais recentes, e ainda que suas lutas sigam sendo visibilizadas e trabalhadas com as muitas sementes que plantou, ela mesma se tornou uma causa, uma voz em uníssono: quem mandou matar Marielle Franco e Anderson Gomes, e por quê? Responder a essa pergunta é crucial para a democracia brasileira, se quisermos que essa se constitua e se fortaleça: se a atuação de Bolsonaro tinha o efeito de mostrar o pior lado das instituições, Marielle e as reverberações de seu assassinato produzem o contrário.
A grandeza de sua existência afronta a diminuta moral do genocida, que saberemos ter relações (quais!) com o crime, para além de ser vizinho do atirador. A falta de condução das investigações durante os anos de seu governo tem o mesmo caráter do tratamento dado à saúde pública durante a pandemia, revelando não apenas a sua implicação com todas essas mortes, mas o pacto necropolítico operante no Estado brasileiro.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado há 11 anos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é um dos principais documentos que nos permite acompanhar, estatisticamente, este regime necropolítico. A edição de 2023, organizada a partir dos dados do ano anterior, o último da gestão Bolsonaro, retrata os efeitos de um governo que sugere não a sua ineficácia, mas sua intenção. Se as mortes intencionais diminuíram em 2,4% em relação ao ano de 2021, o desaparecimento de pessoas aumentou em 12,9% de acordo com os registros, podendo ser um número ainda maior se considerarmos a existência de casos não registrados. O que Marielle diria sobre o fato de que o Brasil produz o equivalente a mais de duas ditaduras argentinas por ano? Como conseguimos dormir diante desses números?
As estatísticas sobre violência sexual contra crianças e mulheres e os feminicídios dizem muito sobre as guerras diluídas no cotidiano, dos espaços institucionais ao espaço doméstico. As principais vítimas de estupro são crianças, negras e 61,4% com idade inferior a 14 anos. Após o registro das ocorrências, o que aconteceu com elas? A resposta não está na segurança pública, mas na saúde: a cada 20 minutos, uma criança é obrigada a gestar e parir no Brasil. São meninas negras violadas que se tornam as mães que irão enterrar seus filhos, mortos pelo Estado brasileiro. Ela, que vocalizava sobre o genocídio em curso da população negra através da problemática segurança pública, não deixaria passar esse dado, cujos indicadores são ora estáveis, ora ascendentes.
E mesmo diante de tanta injustiça social representada por números, são as narrativas das mulheres negras que nos comovem e subvertem o horizonte trágico. Anielle Franco, às lágrimas diante das recentes informações sobre as investigações, nos conta: “Se a minha mãe, depois de perder a filha com 5 tiros, segue com esperança, quem sou eu para não ter”. Ao mesmo tempo, enquanto não se souber os mandantes e as razões do assassinato de Marielle Franco, recai sobre todas as mulheres negras o recado para que não ousassem ascender a posições de poder. Em desobediência civilizatória, o que vimos foi um aquilombamento político partidário e a eleição da maior bancada negra jamais vista neste país. É nessa encruzilhada histórica que estamos agora.
Termino essa coluna agradecendo profundamente os aprendizados e oportunidade de convivência com as mulheres negras deste país e deste continente, tão amplo e diverso quanto nossas lutas. A radicalidade amorosa com que resistem funda nossos alicerces institucionais e nos convoca a sermos amálgama, abraço e escudos.
Muito Axé!
* Lara Werner é sanitarista com formação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e integra o programa Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko