Rio Grande do Sul

EDUCAÇÃO

Denúncias e cartaz com Bolsonaro tensionam o Colégio Militar de Porto Alegre

Queixas de assédio sobre professores já chegaram ao Ministério Público do Trabalho

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Estreitamento temático estaria acontecendo, especialmente, na elaboração de avaliações e de materiais para as aulas - Foto: André Daguiar

Sob o mandato Jair Bolsonaro, apareceu uma novidade em todas as salas de aula do tradicional Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA): um cartaz com a foto de Bolsonaro. Nenhum presidente anterior gozou de tamanha estima da administração da casa. A bem da verdade, Bolsonaro não apareceu sozinho no impresso. Abaixo de sua foto e nome, luziam nomes e fotos dos generais Marco Antonio Freire Gomes, Flávio Lancia, Carlos Vinícius de Vasconcellos e do coronel Ítalo Mainieri Junior. O primeiro deles comandante do exército em 2022, os dois seguintes ligados à área de educação da força e o último diretor da escola. 
      
Um dos rostos e nomes para serem admirados pelos alunos do CMPA, o general Freire Gomes, que comandou o exército entre março e dezembro de 2022, foi aquinhoado com exposição pública de outra ordem e origem: sua graça aparece citada no diálogo entre o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, e o ex-major Ailton Barros, que urdiam um golpe de estado. Em áudio em poder da Polícia Federal e datado de 15 de dezembro, Barros diz a Cid que precisa prosseguir pressionando Freire Gomes para que ele “faça o que tem que fazer”.

Com muitos anos lecionando no CMPA, um de seus professores, cujo nome está sendo preservado, relata nunca ter visto algo do tipo durante os governos anteriores. Porém, tão logo assumiu o novo presidente, os cartazes sumiram. No lugar deles não apareceu o de Lula com seus generais recém nomeados. Se não havia antes de Bolsonaro e não há depois dele, tudo fica mais estranho ainda.


Nenhum presidente anterior gozou de tamanha estima da administração da casa / Foto: Reprodução

Docentes sem autonomia 

O episódio – relata a mesma fonte – foi o mais recente de uma série que se aguçou nos últimos dez anos e, sobretudo, nos últimos quatro. Que se manifestaria em assédio, restrição de acesso a conselhos por professores e alunos e cerceamento de temas “ideológicos” para discussão. Como reação, o assunto foi levado ao Ministério Público do Trabalho (MPC).
 
“Desde a eleição de 2014, diz, acentuada com o golpe contra a presidenta Dilma, houve uma mudança, sutil no início, mas depois muito clara de linha ideológica, com orientação da Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial (DEPA), órgão que rege os colégios militares no Brasil”.

Ele afirma que “os docentes não têm autonomia para elaborarem seus planos de aula, uma vez que todas as aulas já vem pré-determinadas pela estrutura curricular da DEPA, algo que não ocorria até 2020”. 

Caetano, Armandinho e Mafalda 

O estreitamento temático estaria acontecendo, especialmente, na elaboração de avaliações e de materiais para as aulas. Quando a abordagem é considerada polêmica, acabaria vetada pela direção escolar. 
   
“Há casos de provas em que textos, por apenas serem letras de canção, foram retiradas da prova”, explica. Uma das vítimas foi O Quereres, de Caetano Veloso, cujos primeiros versos são “Onde queres revólver, sou coqueiro/ E onde queres dinheiro, sou paixão/ Onde queres descanso, sou desejo/ E onde sou só desejo, queres não...”

Mas vai além, conforme o testemunho, para alcançar os quadrinhos e o teatro. “Tiras dos personagens Armandinho e Mafalda também sempre estão na mira”. Uma prova do ensino fundamental, onde se tratava da questão do racismo presente na peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, quase foi vetada. “Precisou vir acompanhada do trecho da Constituição que fala da criminalização do racismo”, explica. LGBTfobia e Transfobia seriam temas tabus. “Essa postura, sistematicamente acentuada desde 2018, tem feito os docentes a exercerem uma autocensura recorrente.”

As pirâmides e os precarizados 

No começo, conta ele, a pressão recaía sobre questões de gênero ou racismo. Depois o alvo se moveu para disciplinas como História, Geografia, Sociologia e Filosofia. Situações prosaicas de sala de aula passaram a ver vistas com olhares inquisidores. Quando surgiu numa prova de Ciências, uma imagem de trabalhadores do antigo Egito construindo pirâmides – para abordar as ferramentas utilizadas, sistemas de polias, etc – a figura acabou retirada já que poderia fazer alusão a trabalhadores precarizados. 
      
“Em relação a gênero, a norma é seguir a língua “culta”, sendo proibida a utilização de termos neutros, utilizando o “e” e “@”, como em “todes” ou “tod@s”. O descumprimento da regra – ocorrido em uma postagem em aula virtual – resultou em sindicância.

Mais trocas e menor participação

Docentes civis ou militares estariam vivendo “uma situação de assédio permanente”. Alguns teriam sido trocados de anos escolares, de temas onde desempenham melhor suas funções, para outros onde não têm experiência ou desenvoltura.

“Um professor que trabalha e possui grande experiência em redação no ensino médio, ir ministrar aulas de língua portuguesa no ensino fundamental”, conta. Ou quem leciona matemática com grande experiência em cursinhos de pré-vestibular, ser removido para o ensino fundamental, e vice-versa. “Grande parte das trocas foram realizadas durante o ano escolar, com visível prejuízo aos estudantes e ao processo avaliativo.”

Outra “mudança forte” afetou a possibilidade de participação dos estudantes no conselho de classe. “O novo comando simplesmente retirou os estudantes do conselho, não abrindo espaço para que os docentes possam ouvir os estudantes.” Neste ano, a primeira reunião entre pais e mestres ocorreu sem a presença dos professores. “Somente depois de muita pressão é que os docentes foram chamados para a segunda reunião.”
       
O desconforto veio à luz após a derrota de Bolsonaro. Em novembro de 2022, em Fortaleza, durante o 4º ESCIME, um encontro nacional dos servidores civis vinculados às escolas militares, foram reunidos relatos de assédio moral, de abuso de poder e de descumprimento da legislação que rege a atuação dos funcionários e outras irregularidades. Em junho, o Sinasefe – o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica – levou o tema ao Ministério da Defesa.   

Lamarca e os cinco da ditadura

Com 111 anos completados em março, o CMPA ajudou a formar a elite dos quartéis. Prova disso é que seus ex-alunos Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo chefiariam o governo nos 21 anos de ditadura. Eminência parda do regime, o general Golbery do Couto e Silva transitou pelos seus bancos escolares. Excluindo-se a cúpula do golpe de 1964, Getúlio Vargas e Eurico Gaspar Dutra, também ex-presidentes, estiveram por lá. 
     
Na turma mais nova aparece o general Hamilton Mourão, ex-vice de Bolsonaro. Antes dele, uma violência contra a memória nacional chamou a atenção do país para o CMPA. Aconteceu em 1996 quando o então comandante do colégio, Andrade Neves Pinto, resolveu reescrever a história ao remover o nome do aluno Carlos Lamarca da placa de bronze com a nominata da turma de 1957. Formara-se lá – o que enfurecera o diretor – o futuro capitão do exército e, após desertar, o líder da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e guerrilheiro mais perseguido pela repressão.

O Brasil de Fato RS enviou mensagem à assessoria de comunicação do Colégio Militar de Porto Alegre solicitando sua versão da polêmica. Até o momento da publicação desta nota não tivemos retorno do contato. Quando obtivermos a posição do CMPA ela será acrescentada à matéria.


Edição: Katia Marko