Com muito trabalho e poucos funcionários, o arquiteto e urbanista Rafael Pavan dos Passos assumiu a superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Rio Grande do Sul.
Com uma carreira que inclui uma vice-presidência do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e a presidência da seção regional do instituto, Passos também tem um histórico de presença em conselhos municipais, estaduais e municipais onde se discute desenvolvimento urbano e ambiental, políticas culturais e cultura.
Egresso da militância dos temas do direito à cidade, ele conta aqui sobre suas dificuldades e seus planos e relaciona algumas obras e projetos que devem avançar e favorecer o patrimônio cultural do Rio Grande.
Brasil de Fato RS - Após três meses na Superintendência do Iphan no Rio Grande do Sul, qual a avaliação da estrutura encontrada?
Rafael Passos - Os efeitos do golpe, a partir de 2016, no Rio Grande do Sul, foram percebidos a partir do início do governo Temer. Assim como as consequências da reforma da Previdência. Tínhamos servidores que poderiam ficar mais tempo, mas optaram por se aposentar. Temos uma estrutura de recursos humanos bastante esvaziada e insuficiente.
O Iphan atende três linhas, o patrimônio material, que é aquilo que a gente conhece, as edificações, monumentos... A partir dos anos 2000, temos também o registro, o reconhecimento de modos de vida, as comunidades tradicionais, as manifestações culturais como no caso de São Luís/MA, o boi-bumbá. No nosso caso aqui, a última é a Tava, que é a relação dos guaranis atuais com as missões jesuíticas guaranis. Eles têm um espaço. É o último reconhecimento, aliás, depois de tantos que as Missões têm. E o outro braço é a arqueologia. Todo licenciamento no país precisa passar para o Iphan. Não tudo, mas a grande maioria. Por exemplo, toda questão energética - linhas de transmissão, instalação de usinas elétricas, solares, eólicas e pequenas ou grandes hidrelétricas, no nosso caso, as pequenas.
Temos dois arqueólogos para atender o estado inteiro
Tudo passa pelo Iphan para demonstrar se tem ou não tem algum resquício arqueológico que precisa ser salvaguardado. Um arqueólogo tem que apresentar um plano contratado pela empresa de como vai salvar aquele bem que deve ser levado para uma instituição de pesquisa e tal.
São esses três braços. Patrimônio material e arqueologia têm uma demanda muito grande. O Iphan foi criado em 1937. O primeiro tombamento, logo depois, é São Miguel das Missões, e assim sucessivamente diversos. Tem um grande volume de bens como, por exemplo, as cidades, às vezes quase inteiras, casos de Antônio Prado ou de Santa Tereza, dois municípios na Serra Gaúcha. A arqueologia exige recursos humanos, pesquisa.
No Cais Mauá, em Porto Alegre, o tombado é o pórtico com os dois armazéns do lado, mas tem toda uma área de influência que é marcada na portaria. Tudo que passar por ali, qualquer intervenção, tem que vir para o Iphan.
A Ufrgs é a mesma coisa. Tem dois bens protegidos, a Faculdade de Direito e o Observatório. Mas todo o campus do Centro, por causa disso, é demarcado como área de entorno. Tudo passa por aqui para qualquer intervenção, às vezes, mínima. É um volume de trabalho muito grande. Com a redução de pessoal dos últimos anos, temos duas arquitetas na sede aqui e um arquiteto em São Miguel. Temos dois arqueólogos para atender o estado inteiro.
Estamos tentando retomar a execução do Centro de Interpretação do Pampa, em Jaguarão
É muito pouco. A insuficiência de pessoal também vai impactar em outra coisa: como é que a gente tomba, passa a proteger novos bens?
Por exemplo, um projeto político que foi muito posto (pelo governo Lula) na questão negra. Tem um processo de tombamento dos Lanceiros de Porongos, em Pinheiro Machado, onde foi o massacre (também conhecida como Traição de Porongos, a chacina foi praticada em 1844 pelas tropas imperiais, supostamente em conluio com o general farrapo David Canabarro, contra a infantaria de escravos dos farroupilhas).
Este é o quadro que a gente encontra. A gente teve um aumento de quatro vezes no valor de investimentos. Ao mesmo tempo, isso não é acompanhado por um aumento de pessoal para atender e dar vazão ao investimento, que não é muito, R$ 100 milhões para o país inteiro.
Por exemplo, a questão de terminar a enfermaria (Centro de Interpretação do Pampa (CIP), no histórico prédio da antiga Enfermaria Militar de Jaguarão), um projeto importante que está com a Unipampa. Tem o financiamento nosso, mas é em Jaguarão, uma cidade histórica com seu conjunto tombado pelo Iphan. Está sendo executado pela Unipampa. Agora, estamos tentando retomar a execução dessa obra.
A gestão Bolsonaro acabou com a ideia de Parque Histórico das Missões
BdF RS - Desses 100 milhões está definido o que virá para o Rio Grande do Sul?
Rafael - Os planos de ação foram levados para Brasília. No caso aqui, é muito variado. Tem desde produção gráfica, como produzir, imprimir, distribuir. A publicação sobre o mapeamento da capoeira no Rio Grande do Sul está pronta. Agora é fazer uma licitação para contratar.
Precisamos fazer melhorias no Parque Histórico das Missões. Este nome vai ser retomado. A gestão Bolsonaro acabou com a ideia de parque que existia antes. Juntava São Miguel, que é a principal, e outras três (ruínas), que também são tombadas. São menores, não tem a opulência de São Miguel porque era a única só de pedra. Acabou-se com a ideia de parque visando um caminho para fazer uma concessão à iniciativa privada de São Miguel, onde poderia haver algum interesse mercadológico.
BdF RS - E teria algum plano para recompor o quadro de pessoal? Porque eu imagino que essa situação é vivida em outros estados também.
Rafael - Sim, em diversos estados. Existe uma questão estrutural: o Iphan nunca teve plano de carreira. Hoje volta ao Ministério da Cultura. É mais antigo que o próprio MinC. Entre os órgãos da União, só perde para o Itamaraty do ponto de vista da qualificação dos seus quatros. Quase todos os servidores têm mestrado, se não todos, e muitos têm doutorado. É alta qualificação sem plano de carreira. Logo, tem, somados esses dois fatores, uma evasão muito grande. O segundo ponto é fazer um concurso para contratação de temporários.
Porto Alegre tinha uma lei do inventário que foi derrubada em 2019
BdF RS - Temos algumas demandas no estado como o Cais do Porto, a casa do escritor Dyonélio Machado, teve já a destruição da casa do também escritor Caio Fernando Abreu, e o tombamento do Memorial Luiz Carlos Prestes. Como o Iphan pode trabalhar essas questões?
Rafael - Há um desconhecimento em relação ao trabalho do Iphan que também se deve ao próprio Iphan. E a própria ideia de patrimônio muitas vezes vem carregada de uma ideia meio elitista que é preciso desconstruir. A gente teve, nos últimos anos, a construção de uma visão na qual o patrimônio atravanca o progresso.
Porto Alegre tinha uma lei do inventário que foi derrubada em 2019. A Câmara Municipal disse que ela tinha vício de origem e aí aprovou a revogação. E fez uma outra que surgiu do nada, não passou nem pelo Conselho Municipal de Patrimônio, e é uma lei que hoje favorece muito o mercado imobiliário e começa a agravar esses problemas.
Hoje o próprio inventário está sob ameaça. Hoje uma casa, como a do Dyonélio Machado, é inventariada pelo município. Entende-se que existe o tombamento e o inventário. Porto Alegre criou essa figura do inventário, que é um tombamento... O inventário seria, no rigor do Iphan, um instrumento para o tombamento. No município, o inventário se tornou uma categoria de tombamento, de proteção, mas diferente do tombamento.
Vamos pegar o caso do Memorial Luiz Carlos Prestes. Claro, é o Oscar Niemeyer. Do ponto de vista da arquitetura, não é um dos edifícios mais emblemáticos dele. Mas o que tem de emblemático ali? É justamente a relação do seu trabalho, daquele trabalho específico de Niemeyer, com a relação política da própria vida dele.
Tem uma questão histórica. O valor está muito mais baseado na história e menos na estética. A história do Niemeyer junto com a história do Prestes, histórias que inclusive se cruzam em vários momentos, inclusive depois da morte do Prestes e da própria morte do Niemeyer, porque o memorial é construído depois da morte de ambos.
Tem que vir o pedido, vai ser analisado. Mas, a priori, acho que ele tem toda a justificativa para ser tombado. Mas a gente tem um passivo muito grande, é um processo lento.
No Cais Mauá, tem que equilibrar para a cultura, muito mais do que para o comércio como está hoje
O Cais Mauá já é tombado. E não se altera e aí tem área de entorno. Então todo o projeto passa por aqui. E esse projeto que está lá, para ser aberto um edital, para fazer o leilão na segunda etapa, está indeferido pelo Iphan por questões algumas contornáveis, outras, do que já pude analisar - ele foi indeferido antes de eu entrar - são questões estruturais do projeto. Principalmente a questão do acesso veicular que se dá prioritariamente e principalmente pelo pórtico. E com um retorno, enfim, que vai pegar a avenida Sepúlveda. Então quer dizer uma via que é preferencialmente de pedestre que vai virar um retorno viário para acessar todas as torres novas o que é uma demanda grande e veicular. Então, é uma preocupação.
A grande estratégia é tentar manter o máximo dos armazéns de uso. Não só o uso público, mas de gestão pública. E usar culturalmente. Se você deixar só para a cultura, não atrai, assim como se deixar só para comércio, também vai criar um tipo de uso que uma hora não funciona também. Tem que equilibrar para a cultura, muito mais do que para o comércio como está hoje, para a educação, para outros usos. Isso é uma opinião.
O Iphan pode ser a porta para isso. A gente agora vai ter o Escritório Regional no estado de novo. Ele é o único órgão, há muito tempo, que está em todos os estados. Tem esse papel como porta de entrada para trazer um debate. Por que não uma Funarte ali? É preciso se reabrir essa agenda com o governo do estado.
Avaliando o passado, os grupos que conseguiram evitar o projeto anterior tiveram uma vitória. Mas acho que foi muito mais uma derrota do próprio projeto anterior. Ele era inviável. E quando o governo se dá conta disso, ele para. Ele destrata, só que ele destrata só uma parte. Isso é muito curioso. Destratou com o consórcio, mas um ente que tinha contrato com consórcio ele manteve lá, que é o Embarcadero. Não consegui entender nem do ponto de vista administrativo, quanto mais do resto. E hoje a gente tem notificações de problemas na gestão do patrimônio por parte do Embarcadero no Cais.
BdF RS - Tua trajetória vem do movimento social. Fostes presidente do IAB, participastes da ocupação na defesa do Ministério da Cultura, na luta pelo direito à cidade, enfim. Como essa experiência te ajuda hoje em um cargo público?
Rafael - Sou arquiteto de formação de profissão, mas não sou um arquiteto. Nunca fui um arquiteto restaurador. Minha especialidade não é o patrimônio em si, não é a edificação, mas acho que somo duas coisas da minha trajetória. Ou três. Uma experiência de arquiteto, alguma experiência de arquiteto de projeto, e uma experiência grande na área de estudo do planejamento urbano.
Minha área de militância sempre foi o planejamento urbano, voltado à questão do direito à cidade. E a minha militância também sempre esteve ligada à cultura. Então, essas valências da minha trajetória acabam se somando agora e aqui, onde encontrei um grupo de profissionais sempre muito dedicados, muito afim, muito sérios, e com um alto grau de formação e capacidade.
O que é bom no meu papel aqui é compreender isso tudo e ter um olhar mais amplo da cultura. Então, essa minha experiência me dá isso. Uma das diretrizes que está sendo estabelecida vai ser a questão de provocar o uso de bens, de imóveis, de edifícios protegidos e tombados, sejam federais ou em outros níveis, para habitação e interesse social, como uma forma de trazer isso para os centros urbanos. Um dos grandes desafios do patrimônio é a conservação. E aí, como é que é a conservação? Porque é cara. Não é qualquer mão de obra, precisa qualificar. Como compatibilizar esse custo maior com uma população que não tem, muitas vezes, condições de conservar a sua habitação? Tudo tem que ser bem pensado. Pode ser uma oportunidade para, digamos assim, essa minha trajetória estar trazendo esse debate para dentro.
Meu papel aqui é compreender isso tudo e ter um olhar mais amplo da cultura
O Iphan é, independente da trajetória que tenho, um órgão de Estado. Tem que estar aberto a todos. E é um governo que vence por uma agenda política pautada no seguinte: precisamos reconstruir, inclusive, um amálgama político do país. E esse governo precisa responder e a cultura talvez seja a porta principal.
Por exemplo, a questão da democratização do país e de uma memória da democracia. Isso está na agenda. Estão sendo construídas em Brasília as diretrizes para que a gente possa olhar para lugares de memória da ditadura e encontrar instrumentos mais adequados porque talvez nem o tombamento, nem o registro sirvam.
Essa relação do direito à cultura e o direito à cidade são dois direitos previstos na Constituição, mas que, na hora da prática, estão muito separados. Acho que isso é com que posso contribuir. Estar atento às demandas específicas da sociedade civil.
BdF RS - E tu achas que, com isso, conseguirias popularizar mais o Iphan?
Rafael - Não é suficiente. Acho que é a primeira porta, mas a gente precisa construir. É uma coisa para se planejar melhor, 2024, 2025... Agora estamos executando o que estava previsto desde o ano passado.
Edição: Ayrton Centeno