O setor da agricultura gaúcha, em especial a agroecologia, vem vivenciando momentos de tensão nos últimos anos. Pandemia, depois problemas climáticos, incluindo secas e inundações, e adequações na lei das feiras em Porto Alegre são alguns dos temas em pauta nos últimos tempos.
Com tantas notícias preocupantes, o Plano Safra da Agricultura Familiar, anunciado pelo governo federal no final do mês de junho, trouxe um certo alento para os produtores, alguns endividados e inseguros com o futuro econômico e político da atividade. O programa destinará R$ 71,6 bilhões ao crédito rural para agricultura familiar (Pronaf) para a safra 2023/2024. O volume é 34% superior ao do ano passado e o maior da série histórica.
As mulheres rurais também ganham uma linha específica. Trata-se de uma nova faixa no Pronaf Mulher, com limite de financiamento de até R$ 25 mil por ano e taxa de juros de 4% ao ano destinada às agricultoras com renda anual de até R$ 100 mil.
Segundo a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Fetag-RS), o programa oferece um prazo de reembolso de até 10 anos, incluindo até 3 anos de carência. “Isso possibilita um tempo adequado para que as agricultoras possam realizar os investimentos e obter retorno financeiro antes de começarem a pagar as parcelas”, ressaltam Maribel Costa Moreira, coordenadora estadual de Mulheres Trabalhadoras Rurais, e Kalinton Prestes, assessor de Política Agrícola da entidade sindical.
As produtoras orgânicas e agroecológicas celebram a iniciativa. Uma delas é a processadora Elisabeth Citadin, da grande Porto Alegre. Segundo ela, as produtoras merecem ser reconhecidas, pois elas passam dificuldades para conseguir crédito, sendo o preconceito ainda maior para as mães e aquelas que são chefes de família. “Este incentivo é muito bem-vindo. É difícil para nós conseguirmos financiamento com este juro. Somos sempre esquecidas”, reforça Marlene Justin, de Itati, no Litoral.
Empoderamento feminino
As quilombolas e assentadas da Reforma Agrária terão aumento no desconto no Fomento Mulher, modalidade do crédito instalação, de 80% para 90%. O Plano Safra também traz de volta o Programa Mais Alimentos, com medidas para estimular a produção e a aquisição de máquinas e implementos agrícolas específicos para a agricultura familiar.
A iniciativa também foi aprovada pela produtora Franciele Bellé, que cita o empoderamento feminino como uma das vantagens do programa. A mulher, acrescenta ela, passa a não precisar mais do marido ou do pai para tocar a propriedade. “Muitas estão se tornando chefes de família. E o patriarcado está no fato de tirar a autonomia de recursos, o chamado poder do dinheiro”, diz ela.
Bellé reforça que, em alguns casos, ela é produtora, e o companheiro não, inviabilizando a criação de outra fonte de renda. “Com este dinheiro é possível construir uma cozinha industrial, por exemplo”, diz.
Coordenadora de Mulheres da Emater/RS-Ascar, Clarice Vaz Emmel Bock concorda com a avaliação acima e diz que o Pronaf Mulher é positivo, pois facilitará as reformas na moradia. “Poucas sabem destes benefícios e quase ninguém tem acessado”, acrescenta. Mas, segundo ela, é preciso prestar atenção nos valores, linhas, juros, categorias e especificações.
Para Augusto Alvim, professor da Escola de Negócios da PUCRS, doutor em Economia, com a retomada do Pronaf Mulher existe a possibilidade de resgatar iniciativas que valorizam o trabalho da mulher no campo, contribuindo para criar oportunidades de trabalho e evitar a saída delas do meio rural.
“Além disso, essa linha específica estimula os investimentos em novos negócios a serem organizados por mulheres ou grupos, o que normalmente contribui para a mudança e a busca de meios tradicionais num setor ainda muito conservador. Também possibilita a criação de novos negócios, agregando valor ao produto e favorecendo a diversificação da propriedade familiar, o empreendedorismo e a inovação na agricultura”, afirma Alvim.
Viabilidades técnicas
Professor e economista com ênfase em questões agrárias da Ufrgs, Paulo Waquil reforça a importância em adotar alguns cuidados tais como a análise da viabilidade técnica e econômica, ou outros financiamentos pendentes. O custeio deve ser pago em médio prazo, e os investimentos para a compra de máquinas e equipamentos, longo prazo.
O Pronaf Mulher tem algumas características importantes como o fato de o nome da mulher ter que constar na DAP (Declaração de Aptidão). “Também é importante acompanhar se o volume de recursos será mesmo utilizado nessa modalidade, pois pode ocorrer a sobra pela falta de enquadramento nos requisitos exigidos”, complementa Daniela Kuhn, professora de Economia Feminista, também da Ufrgs.
Histórico do Pronaf Mulher
Segundo o artigo “O papel dos mediadores no acesso das mulheres ao Pronaf Mulher”, de Anita Brumer e Rosani Marisa Spanevello, em maio de 2001 foi estabelecida a portaria do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) que fixou o destino de no mínimo 30% dos créditos do Pronaf para as mulheres, tendo em vista a reduzida participação das mulheres como beneficiárias desde a criação do Programa, em torno de 7%.
No Plano Safra 2003/2004 foi criado o Pronaf Mulher, que consiste em recursos adicionais destinados a projetos de investimento da família que contemplem atividades desenvolvidas pelas mulheres. Inicialmente circunscrito às mulheres de famílias enquadráveis nos Grupos C e D, o Pronaf Mulher foi operacionalizado apenas pelo Banco do Brasil, que emprestou R$ 2.540.609,00, correspondendo a 469 operações (média de R$ 5.417,10 por operação).
Nos primeiros anos, a participação das mulheres como tomadoras de crédito rural foi menor do que o esperado, em decorrência de sua baixa autonomia econômica e possibilidade de gerenciamento dos recursos que são fruto de seu trabalho, tendo em vista que elas não dominam os espaços de gestão e comercialização de sua produção.
Além disso, muitas mulheres não tinham documentação pessoal básica (carteira de identidade, certidão de casamento, título de eleitor, cadastro de pessoa física - CPF), necessário para a abertura de conta em banco e acesso a diversos programas governamentais e de título de propriedade da terra, afetando suas possibilidades de acesso ao crédito, pela inexistência de garantias.
Outro fator importante é o endividamento do marido – que, com frequência, as mulheres desconhecem – impossibilitando seu acesso ao crédito, uma vez que o financiamento do Pronaf é atribuído à unidade familiar. Soma-se a estes fatores o medo das mulheres em assumir uma dívida que elas temem não poder pagar.
Geralmente são exigidas das mulheres maiores garantias do que aos homens. Ressaltam, ainda, no caso das mulheres, que as dificuldades que enfrentam na obtenção de garantias fundam-se nas limitações decorrentes de sua condição de gênero, pois “[elas], via de regra, não dispõem de bens em seu nome, necessitam da anuência do marido para assinar papéis e não dispõem de amizades, vizinhas ou companheiras habilitadas para a função de avalistas.”
Conforme o artigo, está na elaboração dos projetos a serem financiados, pelas agências oficiais de extensão, que em geral são de baixa qualidade, repetitivos e não levam em conta as especificidades nem o potencial real das unidades produtivas.
Mais um aspecto que afeta o acesso das mulheres ao crédito e o sucesso de suas atividades produtivas é a ausência de formação e capacitação para a autossustentação dos empreendimentos e as restrições existentes no acompanhamento do andamento dos empreendimentos.
Antes mesmo da realização das Cirandas do Pronaf havia sido constatada uma dificuldade para o acesso das mulheres, pelo fato de haver um único titular do estabelecimento agropecuário, que na maioria das vezes era o homem. Conhecendo ou não o endividamento dos maridos, a solicitação encabeçada por eles impedia-as de ter acesso ao crédito.
Edição: Katia Marko