Ao longo das últimas semanas o estado do Rio Grande do Sul foi tomado pelo debate sobre seu hino. Os principais jornais televisivos e programas de rádio trataram do tema que estava em tramitação na Assembleia Legislativa. Assisti parte dos debates gerados pelo assunto, em uma condição particular, na de estrangeiro. Não nasci no Rio Grande do Sul, não sou daqui e tenho pouca familiaridade com a cultura gaúcha. Entre Internacional e Grêmio fico com o meu Vasco. Ainda não faz dois anos que estou morando em Porto Alegre, fui ganho logo de início pelo chimarrão, mas recém estou me acostumando com as gírias faladas por amigos e companheiros. Para se ter uma ideia, a distância entre Marechal Deodoro, em Alagoas, e Porto Alegre é algumas centenas de quilômetros maior que a distância entre Londres e Moscou. Alagoas fica mais próximo do continente africano do que do Rio Grande do Sul.
Participar do debate sobre o hino nessa posição, como alguém que vem de fora, um forasteiro, é algo que faz com que se tenha um outro campo de visão. Este texto não busca falar sobre a PEC ou debater a imutabilidade do hino e demais símbolos gaúchos. Como nordestino e negro, é uma reflexão direta e que pode conter erros, sobre o tema da identidade regional no Sul do país.
A formação de identidade e símbolos
Um ponto inicial é partir da compreensão básica sobre o que são símbolos. Podemos, de forma breve, definir símbolos como uma expressão da identidade. O hino, a bandeira, assim como os grandes heróis e mitos, são expressões materializadas da identidade cultural de um determinado lugar. Os símbolos gaúchos foram forjados pela identidade gaúcha, e então ajudam a reforçar e afirmar essa identidade de uma maneira que se retroalimentam.
Mas aí, entramos em um outro ponto: como se formam as identidades?
Uma identidade é formada a partir da necessidade do sujeito ou de um grupo social se afirmar na sociedade em que vive. Essa afirmação parte da compreensão da existência de um eu e de um outro. Esses dois polos são construídos com objeção e adversidade entre si. A identidade do eu é construída a partir da negação da identidade do outro. O eu é aquilo que o outro não é. São construções e identidades complementares na medida que são opostos, e se opõem na medida que se complementam.
No geral, podemos dizer que todo e qualquer grupo social, étnico ou nacional se define pela identidade comum entre os seus membros e em consequência, pela oposição comum que esses membros realizam a outros grupos sociais.
Uma das coisas que mais me chamou atenção quando vim para o Rio Grande foi o sentimento de identidade existente. Uma identidade que não é só a afirmação dos símbolos do estado e de sua cultura, mas também de uma história comum e de uma população específica. Aqui, diferente de outros estados do país, se fala em povo gaúcho. Não falamos de povo carioca, ou povo maranhense, por exemplo. Aqui não vemos a afirmação da identidade do Rio Grande do Sul sendo algo em contraponto à identidade de um outro estado vizinho. Algo normal e que existe na construção da identidade alagoana contra o pernambucano ou sergipano. Aqui vemos a afirmação de uma identidade gaúcha em oposição ao conjunto dos estados da federação. É um povo gaúcho, e esse povo tem sua identidade, sua cultura e seu símbolo.
O elo cultural do "povo gaúcho"
Nesse momento, chegamos a um novo ponto na discussão: como se dá a formação de uma cultura e de uma identidade. Correndo o risco de errar, como em tudo que se busca resumir, é possível afirmar que a cultura de um lugar, de uma região ou de um povo, é formada a partir das relações sociais que são feitas ao longo da história nesse local, região, ou por esse povo.
É a forma que as relações sociais se constroem dentro de um grupo específico, em um lugar específico, ao longo dos anos. No Rio Grande do Sul, a cultura gaúcha é uma expressão das relações que foram estabelecidas ao longo dos anos pela população local. E esta cultura, busca se afirmar a partir de uma identidade, que se constrói a partir da movimentação de afirmação de si e da negação do outro.
Nesse ponto chegamos a uma importante conclusão: não existe cultura estática. Se entendemos a cultura como consequência das relações presentes no conjunto da sociedade, e se a sociedade segue a todo instante em transformação, não existe cultura que permanece imutável ao longo dos anos. Assim como a identidade também se modifica, já que ela parte da negação do outro, e este outro muda com os anos, da mesma forma como parte da afirmação do eu, e esse eu, também se transforma, portanto, a própria identidade também é mutável.
Um fator importante é que a afirmação de uma identidade, e por consequência dos símbolos, ou o sentimento de conformação de parte da população rio-grandense, como povo gaúcho, não se deu de forma automática. Foi preciso que tivesse um evento na história, uma movimentação de um grupo social, para afirmar e demarcar essa identidade, essa cultura e fundamentalmente o ato de criação desse povo em oposição ao restante da federação.
A cultura gaúcha é uma consequência das relações sociais existentes no estado. Porém, não é uma síntese das diferentes relações sociais, em outras palavras, não é uma junção pacífica entre a cultura europeia, africana e indígena. É uma cultura construída a partir do confronto e vitória de um grupo social sobre os restantes. É a afirmação de uma cultura europeia, em detrimento do apagamento histórico, ou silenciamento, das culturas de povos originários e da população africana.
Isso ocorre pelo fato da população europeia ter tido um predomínio político, econômico e social sob as demais parcelas da população. E dessa forma poderem expressar a partir daquilo que seria o “gaúcho universal” sua particularidade de “euro-gaúchos”. Transformaram o imaginário daquilo que seria o povo gaúcho na sua identidade própria. O falso universalismo sobre o que seria o gaúcho é uma afirmação identitária que os euro-descendentes criaram ao longo do século XIX, é a brancura em sua expressão cultural e regional.
Normalmente o ato fundador de um povo se dá em algum confronto épico ao longo da história. Não seria diferente com o povo gaúcho. O mito fundacional daquilo que inicia a trajetória do povo gaúcho em contraste aos demais território nacional seria a Guerra dos Farrapos.
Se a Guerra dos Farrapos coloca em oposição militar a República Rio-Grandense e o Império, após ela se cria por parte dos separatistas republicanos uma oposição de identidade entre o povo brasileiro e o povo gaúcho, esse sentimento se intensifica após a chegada de italianos, alemães, poloneses e demais europeus na região Sul de nosso país. A cultura desses europeus se soma à cultura local anterior em um movimento que busca se opor ao restante do país. Se o Brasil seria o país do samba e da bossa nova, da "democracia racial", e o paraíso das raças, como se afirmava nas primeiras décadas do século XX, a região Sul e em especial o Rio Grande teria como um ato de afirmação de sua identidade, em contraponto a mestiçagem do restante do país, justamente a sua brancura e sua euro-descendência acentuada.
Assim, a identidade do povo gaúcho ou do tradicionalismo se constitui com um forte marcador racial e politicamente com um forte marcador conservador.
O gaúcho tradicional, o "povo gaúcho" inventado, é o branco descente de europeus. A identidade gaúcha é a afirmação da identidade da parcela branca economicamente dominante no estado.
Os afro-gaúchos e sua identidade
Por outro lado, a população negra tem suas tradições, identidade e cultura excluída daquilo que o tradicionalismo gaúcho, e do imaginário de um "povo gaúcho", porém por uma questão geográfica ela é gaúcha. Essa localização geográfica gera um duplo pertencimento. Pois são parte desse estado, estão sujeitos ao que seria o tradicionalismo gaúcho, mas não se sentem parte do mesmo, e tem suas tradições repelidas, recorrendo a criação de uma identidade social própria. Apesar disso, a cultura afro-gaúcha e dos povos originários aqui presente, entra em contato com a cultura euro-descentende, visto que não existe cultura estática.
Ao chegar na periferia de Porto Alegre, logo percebi a existência daquilo que eu não conhecia: uma parcela significativa da população gaúcha, que por conta de sua racialização foi excluída da visão popular sobre o que seria o gaúcho. Uma população afro-gaúcha que não sente a mesma identificação com o imaginário povo gaúcho. A identidade gaúcha não é reivindicação por todos os gaúchos e existe um corte racial nisso.
Os afro-gaúchos criaram formas únicas de defesa de sua identidade e cultura, formas únicas de organização política, e também para expressar sua religiosidade. O samba rock de Bedeu, a literatura afro-diaspórica de Oliveira Silveira, as Escolas de Sambas espalhadas pelo estado, os centenários clubes negros, o churrasco para Ogum e a força do Batuque, além do 20 de novembro, são algumas expressões da negritude que se encontram no Extremo Sul do Brasil e que são invisibilizadas.
A cultura dos povos originários e dos descendentes de africanos trazidos para esse solo são tão regionalmente gaúchas como o são a cultura dos descendentes de europeus. Porém apenas uma delas teve poder político para se afirmar como identidade de um povo e representar o conjunto da população. Sob o manto de um pretenso universalismo se encontra o identitarismo branco. Discutir cultura gaúcha é romper com essa lógica de apagamento e epistemicídio, botando o dedo na ferida.
O que existe hoje é que o fortalecimento político do protesto negro brasileiro tem particularidades regionais fortes no Rio Grande do Sul, um estado de minoria negra e de forte presença de uma identidade negra. Esse fortalecimento político gera uma reação reacionária de setores de extrema direita que pegam a identidade gaúcha e sua brancura, escondida em nome de um universalismo, para acusar de divisionista os defensores de uma negritude.
É possível termos uma cultura gaúcha?
Por fim, para colocarmos uma conclusão nesse texto. A discussão sobre cultura e identidade precisam serem feitas a partir da ideia que esses conceitos se movimentam com o tempo e a partir de novas relações sociais que se estabelecem. Nada é estático e aquilo que é estático está destinado a perecer ao ser posto em movimento.
A cultura e a identidade gaúcha como entendemos hoje é uma expressão da brancura europeia no Sul do país. Ela não é verdadeiramente tradicional, nem verdadeiramente gaúcha, ela é somente europeia e embranquecida, é uma imposição política, além de ser por natureza excludente. A cultura gaúcha e o povo gaúcho são invenções.
Falar sobre cultura gaúcha é falar sobre as diferentes manifestações culturais dos diferentes povos que existem no extremo Sul do país. É falar sobre a cultura dos descendentes de europeus, mas também dos que continuam o legado africano nessas terras, assim como dos povos originários.
É falar sobre a gaita, mas é também falar sobre os pontos para Bará, é sobre o fandango mas também sobre o som que ecoa de um sopapo. É a prenda, mas também é o mestre de capoeira. É o CTG mas também são os quilombos urbanos. Só teremos uma cultura gaúcha verdadeira quando se romperem o véu da brancura e as manifestações de povos não brancos passarem a ser aceitas.
Este movimento trará resultados concretos. O peso do racismo e sua violência psíquica serão modificados. O apagamento epistemológico deixa marcas sociais que atravessam a vida do sujeito negro e indígena.
Acredito que para a construção da cultura gaúcha verdadeira, precisamos destruir a cultura gaúcha como ela se apresenta hoje: europeia e identitária. É preciso modificar o cerne dela, seu ponto de início. É necessário discutir o papel da população negra e indígena na Guerra dos Farrapos e o papel dos Lanceiros Negros. Em Porongos tudo teve fim e teve também início, e nela encontraremos resposta. Acreditamos ainda que é pela ação política da afirmação dessas identidades excludentes no estado mais racista do Brasil que chegaremos a uma solução para o dilema da cultura gaúcha.
* Educador popular, militante do movimento negro, constrói o Espaço Cultural Marlon e Marcelinho
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira