Rio Grande do Sul

Coluna

Um grande dia e uma grande noite

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"Qual a importância de que milhares de escritorAs mostrem suas/nossas caras?" - Reprodução
O futuro é coletivo e é feminiSta e o estamos escreVendo entre todas

Tudo começou com o livro, com as fotos das escritoras mostrando as caras, com a importância de nos reunirmos entre as que escrevemos e mostrar nossas existências ao mundo e a nós mesmas.

Qual a importância de que milhares de escritorAs mostrem suas/nossas caras?

Nunca é só o resultado, mas o processo. A pergunta mais do que a resposta. Tudo começa com um sonho.

Um dia, em 2022, a grande Giovana Madalosso teve a ideia de reunir as mulheres que escrevem para uma foto. Essa ideia foi replicada como fichas de dominó. E assim dominou a cena literária. (A nossa. Infelizmente para os homens ainda somos tema, somos data, somos “escrita feminina”, enquanto eles são – ou se acham− universais.)

Então foi São Paulo, e foi Porto Alegre e foi Fortaleza e foi Rio Grande/RS e foi Nova Friburgo/RJ e foi Brasília, e foi Pelotas/RS e foi João Pessoa e foi Santos/SP e foi Garopaba/SC e foi Jujuy/Argentina e Natal e Londres e o mundo todo. Nós somos escritoras e estamos em todas partes.

Eram tantas e tantas as escritoras chegando que as gavetas estouraram e nós também, de felicidade. Eu também escrevo, E eu, Mas serei escritora se só publico nas redes sociais? Quem pode se chamar de escritora? Quem tem livros publicados, quantos? Um doutorado em letras? Uma editora batendo na sua porta?

No livro, a escritora, sim, escritora, Paula Carvalho ilustra algumas razões históricas pelas quais para nós é tão difícil, ainda hoje, dizer que somos escritoras.

Quando eu li que Clarice Lispector não se dizia escritora, mas amadora, quem seria eu para me nomear com esse ofício? Mas quantas horas por dia dedico eu à escrita e à leitura? Uma vez, uma companheira me disse: Se fosse um homem não duvidaria, eles escrevem uma linha e já são escritores, mariam, seja uma escritora ruim, mas okupa esse espaço que te pertence. E assim, dando a possibilidade de ser uma escritora ruim, tornei-me escritora.

(Fosse outro texto, eu já teria substituído a palavra escritora, dada a repetição. Mas deixo as repetições de propósito, hoje quero ser insistente. Tantas vezes fomos apagadas e negadas, então, hoje estou também aqui escrevendo para fazermos uma reparAção HERStórica.)

As imagens que parecem jogos de espelhos, são mulheres deixando os armários do patriarcado. Assim como um dia existiu uma Carolina Maria de Jesus que tinha certeza que um dia iria publicar, nós temos certeza, hoje, que estamos revolucionando. Estamos implodindo a literatura “universal”, fazendo dela um PLURIverso em que estamos revolucionando a nós mesmas e assim, revolucionando a literatura e a escrita e as editoras e os concursos. Assim como na hora de escrever a gente se transforma, na hora de ir às ruas e dizer Eu sou escritora, há uma vida que não volta a ser a mesma. Agora, estamos afetadas pela palavra e pelo conjunto, estamos contaMINAndo - nos umas às outras.

Vale ressaltar a importância que teve o coletivo nacional do Mulherio das Letras para a concretização deste momento/movimento. Ele também nasceu de um sonho que teve a enorme Maria Valéria Rezende : o de ver escritorAs reunidas. E assim foi como em 2017, aconteceu o primeiro encontro nacional do Mulherio, em João Pessoa, com cerca de quinhentas mulheres de várias partes do Brasil. Desde então, todo ano se realizam encontros nacionais. Este ano será no Rio, de 19 a 22 de outubro. E aqui, no RS, estamos organizando um primeiro encontro regional para o mês de agosto, na cidade de Rio Grande.

Assim como o Mulherio teve muita relevância para chegar a este momento, também o tiveram os grupos de Leia mulheres, Leia mulheres negras, leia mulheres lésbicas, Slam das minas, Sarau das minas. Todos esses grupos foram avançando na mesma direção.

E assim chegamos à Grande noite.

Deusas! Que noite, que Sarau, que potência!

Lendo o livro, vi como Carolina Maria de Jesus nos marcou a muitas de nós. E como ela é sempre um Norte, uma referência, uma imprescindível. Então eu tive a ideia de convidar especialmente a Lilian Maria de Jesus, a neta de Carolina. Enviei uma mensagem que ela não me respondeu, e tudo bem. Mas eu que queria dar a surpresa às minas acabei sendo eu tão surpreendida quanto. Pois Lilian, que se revelou uma kerida, uma pessoa tão linda, chegou assim, como quem vê luz e toca a campainha do Zoom.

Quanta emoção! Ela falava da vó e todas babávamos. Podem ver as fotos em https://www.facebook.com/sarau.das.minas.Porto.Alegre


"Às vezes, quando penso que as coisas estão difíceis e me pergunto para quê, penso em Carolina e na sua força" / Reprodução

Carolina Maria de Jesus (1914-1977), uma mulher que viveu na favela, catadora de papel, negra, com dois filhos e uma filha se dizia escritora e sabia que seria publicada. Ela tinha uma mensagem tão poderosa a passar, que ela conseguiu. Às vezes, quando penso que as coisas estão difíceis e me pergunto para quê, penso em Carolina e na sua força.

Foi o melhor presente que o Sarau das minas podia ter no seu aniversário de 6 anos. Imaginem uma noite de sonhos, encontros, poesia, sorrisos.


"Deusas! Que noite, que Sarau, que potência!" / Reprodução

Tivemos o presente do passado, para construirmos juntas o futuro. Porque o futuro é coletivo e é feminiSta e o estamos escreVendo entre todas.

Gosto de pensar nas metáforas dos números. Carolina nasceu um 14 de março de 1914. Marielle foi assassinada um 14 de março de 2018. A primeira guerra mundial foi do 14 ao 18.

Nós estamos estourando o mundo nas entrelinhas.

* mariam pessah : ARTivista feminista, escritora e poeta, autora de Em breve tudo se desacomodará, 2022; organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre desde 2017 e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta. 

* Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko