O Plano Diretor deve priorizar o bem-estar dos cidadãos e não o mercado imobiliário
Certamente o leitor já acompanhou a divulgação dos primeiros resultados do Censo Demográfico 2022. E viu que o crescimento da população brasileira é cada vez menor, fazendo com que muitas cidades tenham diminuído o contingente populacional. Ainda que estes primeiros resultados sejam de números gerais e sem detalhamento do que acontece em outros níveis territoriais, como bairros e até mesmo os setores censitários, já é possível fazer algumas análises sobre o significado destas transformações nas cidades brasileiras.
No caso de Porto Alegre, é interessante analisar estes dados sabendo que o Plano Diretor está em discussão e prestes a ter sua revisão completada (vejam nossa discussão anterior). E para começar, vamos relembrar os dados mostrados pelo IBGE, começando pelo de população:
Porto Alegre, então, foi uma das cidades que apresentou diminuição de população. Foram contabilizadas 76.780 pessoas a menos que o Censo passado (-5,4% de crescimento). Esta diminuição foi tão significativa que a população hoje é menor até mesmo que a que morava na cidade 22 anos atrás, quando da contagem do Censo 2000. E o que aconteceu neste mesmo período, em relação aos domicílios?
Ao contrário da população, a quantidade de domicílios não deixou de crescer, aliás de forma bastante significativa. Em relação ao último Censo (2010) foram contabilizados 112.771 domicílios a mais! Quando comparamos com 2000, o número chega a 184.066 moradias. Lembrando novamente: em relação ao início do século, a população da cidade diminuiu, mas existem “disponíveis” para uma quantidade menor de pessoas, 184 mil imóveis a mais. Um paradoxo. Como explicar?
Como dito no início, ainda que a radiografia da cidade esteja incompleta, por não termos dados por bairros ou territórios menores, entender por que o fenômeno acontece prescinde dos dados detalhados.
Em primeiro lugar, sim, as mudanças demográficas certamente têm impacto neste aparente paradoxo. Baixíssima fecundidade (número de filhos por mulher) e famílias cada vez menores; aumento de pessoas morando sozinhas, por opção ou por viuvez são capazes de aumentar a procura e a construção de novas unidades habitacionais. Mas vejam, caros leitores: quando olhamos os dados sobre domicílios não ocupados, a quantidade dobrou nos últimos 22 anos, chegando a mais de 128 mil unidades desocupadas! Logo, as mudanças na fecundidade e nos arranjos familiares não dá conta de explicar toda esta mudança.
O paradoxo só pode ser explicado por uma atividade específica, capaz de alterar o espaço urbano: o mercado imobiliário.
Qualquer pessoa que ande pela cidade sabe que é facílimo encontrar novos prédios sendo erguidos, em todos os cantos da cidade. Ano após ano, novos edifícios são erguidos e vendidos, o que leva os defensores do “livre mercado” a argumentar que, se tem gente que compra, qual é o problema?
O problema na verdade é até simples: todas as evidências mostram que por mais que se construam imóveis, o déficit habitacional jamais é resolvido. Num levantamento prévio ao Censo, feito em 2019 pelo IBGE, foram estimados 61.729 domicílios em aglomerados subnormais (nome técnico dado pelo IBGE aos assentamentos precários/favelas), número que era de 56.024 unidades em 2010. O que, no final das contas, resulta em mais um paradoxo: além das habitações precárias terem aumentado, se eventualmente esta população fosse transferida para os imóveis vazios, mesmo assim a cidade ainda apresentaria mais de 60 mil imóveis não ocupados!
Sim, é simplista propor como solução do problema do déficit habitacional a transferência desta população para os imóveis desocupados (ainda que discutir o destino destes imóveis deva sim, entrar na discussão). Mas, o que esta comparação demonstra é a completa ineficiência do mercado em alocar habitação para os moradores da cidade.
A economia política clássica foi construída discutindo a relação entre população X recursos. Vai ver é por isso que a teoria neoliberal não discute mais isso: afinal, ela tem se mostrado irracional e completamente falha na alocação dos recursos: se cada vez se constrói mais, mas os imóveis ficam vazios e existem habitantes que não tem onde morar, como é possível defender que “o mercado resolve”? O livre mercado, década após década, só confirma que sua pretensa racionalidade é uma falácia científica. O mercado tem que se subordinar à sociedade, e não o contrário.
Onde entra o Plano Diretor nesta discussão?
Comecemos por um exemplo: O recentemente aprovado Programa +4D de Regeneração Urbana do 4º Distrito estabelece no seu Art. 24, que o estoque de potencial construtivo é de 6 milhões de m2 adensáveis. Ao estabelecer isto, se está reforçando o engano: de que construir mais significa repovoar ou atrair população. Além do mais, façamos uma pequena conta: se metade fosse destinado à construção de unidades habitacionais de 100 m2 (3 milhões de m2), o resultado seriam 30.000 novos apartamentos. Onde pretendem achar novos moradores capazes de realmente repovoar o 4º distrito, numa cidade com cada vez menos gente?
O que quero dizer é que está mais do que na hora da prioridade do Plano Diretor mudar do atendimento do mercado imobiliário para o bem-estar dos cidadãos, e requalificar áreas com infraestrutura preexistente não é a mesma coisa que liberar construção nestas regiões. Se a população não cresce mais, a prioridade (e a janela de oportunidade) é reorganizar e qualificar o espaço já ocupado da cidade, criando uma cidade justa e agradável de se viver para todos(as). Isto sim é planejar um futuro melhor.
* Mario Leal Lahorgue, Doutor em Geografia. Professor do Departamento de Geografia da UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko