Que disputemos os sentidos dos nossos entendimentos, e construamos nossos mundos após o apocalipse
A publicação desta coluna coincide com o encerramento da 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) tendo, pela primeira vez na história brasileira, uma ministra da saúde: o currículo e competência de Nísia Trindade são de reconhecimento público e notório, ela que esteve à frente da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) durante os terríveis anos obscuros de presidência de Jair Bolsonaro, festejadamente inelegível. Chega a ser irônico que o evento, historicamente conhecido como uma das experiências mais consolidadas de democracia institucional, tenha o mesmo número da legenda que elegeu o genocida.
Desde 1986, quando da realização da 8ª CNS em um formato proposto por Sérgio Arouca e cujo discurso de abertura ainda emociona e reverbera nossas mazelas ainda não superadas, mas agravadas nos últimos anos de crise sanitária, a sistematização proposta para aquela conferência consolidou-se como um dos exemplos mais significativos de participação social institucionalizada, e à altura do desafio do Sistema Único de Saúde brasileiro. Sempre cabe lembrar que não há nenhum outro país do mundo, com mais de 100 milhões de habitantes, que tenha adotado o modelo de direito universal à saúde, a saber: em teoria, nenhum ser humano terá negado o direito ao atendimento de saúde em território brasileiro, independente de sua possibilidade de pagamento ou condição legal no país. Na prática, isso significa o compromisso coletivo de tornar realidade tal premissa, o que não acontece sem muito, muito trabalho.
Trabalho esse que é realizado majoritariamente por mulheres - a maioria da classe trabalhadora do SUS - e para mulheres, a maioria entre usuários. Considerando que o trabalho em saúde é um trabalho de cuidado e com intrínseca relação com os territórios, esse é um dado que não nos surpreende. Mas assusta bastante que tenhamos voltado à razão de mais de 100 mulheres mortas durante a gestação, parto e puerpério por causas evitáveis a cada 100 mil nascidos vivos, retornando às estatísticas de antes da Constituição de 1988, e as questões relacionadas ao aborto não apareçam na agenda nem no discurso. Sintomas do patriarcado? Com certeza, e na mesma medida em que a ala conservadora da cena político partidária tem promovido violência política de gênero contra deputadas federais e outras ministras empossadas desde o terceiro governo Lula. Na mesma medida em que a mídia que tanto colaborou para a ascensão do fascismo no Brasil agora atribui à determinação do piso salarial da enfermagem, a maior categoria profissional do país e majoritariamente feminina, a crise do setor saúde.
Em sua fala na abertura da conferência, Nísia foi precisa em apontar os três eixos norteadores da política pública de saúde nos tempos atuais: a necessidade de autossuficiência em insumos, medicamentos e tecnologia, imprescindíveis ao enfrentamento das emergências sanitárias que deverão se acentuar no cenário de desequilíbrio climático; a determinação social em saúde, ou seja, a intrínseca relação entre o adoecimento e as condições de vida da população, marcadas por fortes desigualdades e violências e cuja perspectiva analítica caracteriza o campo da saúde coletiva latinoamericana; e a saúde mental, há algum tempo apontada como a grande demanda global em saúde. Na mesma semana, a ministra assinou duas portarias que destinaram mais de 200 milhões de reais para a reestruturação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) somente no ano de 2023, retomando o fôlego para o enfrentamento ao paradigma manicomial que nunca deixou de disputar forças no modo como compreendemos os cuidados em saúde mental, mesmo após os marcos legais da reforma psiquiátrica brasileira.
A realização da 17ª CNS aos seis meses do governo que, sob as condições mais adversas, conseguiu estabelecer-se após um golpe de Estado realizado de maneira endógena à própria burocracia prevista por um sistema pretensamente democrático revela um afeto que devemos nos apropriar: o sentido de urgência. O mundo após a pandemia de Covid-19 já não é mais o mesmo: acentuaram-se as desigualdades e a concentração de riqueza entre poucos, e o adoecimento e morte da imensa maioria da população tornou-se um commodity, um recurso a ser explorado e manipulado segundo os interesses econômicos e políticos de uma elite branca e colonialista.
É urgente que nossa esperança não seja ingênua e alienada, e que todos os nossos acúmulos, oriundos do reconhecimento e nomeação de nossas resistências, militâncias e dissidências do capitalismo heteropatriarcal, sejam colocados em prática cotidiana, sob o risco do céu cair sobre nossas cabeças. Parafraseando Nise da Silveira, “há dez mil modos de ocupar-se da vida e de pertencer à sua época”. Estejamos visceralmente ligadxs ao público e ao comum. Que disputemos os sentidos dos nossos entendimentos, e construamos nossos mundos após o apocalipse. Amanhã vai ser outro dia.
* Lara Werner é sanitarista com formação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e integra o programa Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko