Relacionar-se implica em aceitar e suportar tanto aquilo que nos falta como o que falta no outro
Relacionamento é um tema intrínseco à experiência humana. Nós vivemos em sociedade e, como tal, nos moldamos através das interações uns com os outros. Desde cedo, somos expostos à ideia da “alma gêmea”, aquele encontro mágico que supostamente nos preencherá em todos os aspectos. Essa mitologia do amor romântico sugere implicitamente que tudo que nos falta pode ser encontrado no amor por uma única pessoa.
Além de toda essa problemática mencionada, é importante destacar que os encontros, que costumavam ocorrer em espaços públicos com base em troca de olhares e conversas, passaram a ser intermediados por aplicativos de relacionamento.
No primeiro passo, instala-se um aplicativo e, em seguida, o objetivo é criar uma aparência atraente e assim passível de ser desejada. Utilizam-se fotos com ângulos interessantes, imagens de paisagens paradisíacas, frases impactantes, ênfase em profissões que conferem status, signos astrológicos, preferências alimentares e assim por diante. Tudo isso na esperança de encontrar o match perfeito! Mas a pergunta que surge é: será que ele realmente existe?
Apesar da ampla gama de opções, é cada vez mais comum queixas sobre a falta de conexões verdadeiras. As reclamações geralmente giram em torno das mesmas questões: “deu match mas fulano não respondeu”, “comecei a conversa com ciclano e o papo não foi além da superficialidade”.
O que fazer após as corriqueiras perguntas: Quais seus interesses? Onde você trabalha? Onde você mora? Se aprovados, os candidatos que passarem para a próxima fase da seleção deverão lidar com um grande desafio: suportar as diferenças que surgirão.
Com certeza, as diferenças inevitavelmente surgirão, mesmo que essa parte não esteja contemplada no mito do amor romântico!
No entanto, vivemos em uma época em que as diferenças são cada vez menos toleradas. E aqui eu não estou falando apenas sobre a dificuldade de dialogar com pessoas que acreditam no terraplanismo, são contrárias às vacinas ou defendem a pena de morte. Gostaria de refletir sobre as pequenas diferenças que se tornam intoleráveis, a partir do conceito freudiano de “narcisismo das pequenas diferenças''.
Resumidamente, Freud observou que nosso maior desafio não está em lidar com pessoas completamente diferentes de nós, mas sim com aquelas que compartilham fronteiras próximas. São as pequenas diferenças que se tornam intoleráveis. Podemos facilmente excluir pessoas com grandes divergências do nosso convívio, mas como lidar com as pequenas diferenças que surgem no dia a dia?
O problema é que aplicar a lógica de exclusão de toda diferença leva ao empobrecimento de nossas experiências, afinal, o que se aprende diante o espelho?
Relacionar-se implica em aceitar e suportar tanto aquilo que nos falta como o que falta no outro. É compreender que todos somos seres imperfeitos. No entanto, a sociedade nos convoca a uma busca incessante pela total complementaridade, algo que é utópico por natureza. E assim seguimos frustrados na eterna busca pelo encontro perfeito, que não existe.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko