Vivemos hoje a sanha privatista da gestão e das formas de ocupação, produção e uso dos espaços
Não é novidade para ninguém que a redemocratização do Brasil, a partir de 1985/88, possibilitou aos municípios darem um salto em termos de autonomia política, administrativa e financeira, sendo considerados entes federados igualitários de forma pioneira em nossa história. As capitais, assim como as cidades de “segurança nacional”, recuperaram seu poder político emanado da soberania popular, podendo escolher quais caminhos a perseguir.
As grandes metrópoles, todavia, saíram da ditadura totalmente diferentes em escala e problemas sócio-urbanos. O crescimento econômico nas décadas anteriores, por meio da industrialização dependente, formou uma rede urbana que se tornou majoritária na demografia nacional, em consequência também da grande migração em busca de emprego e renda nas cidades. A rápida urbanização brasileira, a partir dos anos 1960, se deu com a implementação de um sistema socioeconômico de concentração de renda, de riquezas e de acesso à terra, que foi acompanhado por um vigoroso processo de espoliação urbana no país. Esse processo de espoliação isentou o Estado e o capital dos ônus relativos à criação das condições necessárias à reprodução da força de trabalho. Moradia, saneamento básico e acesso a serviços de transporte, saúde, educação e assistência social, além de cultura e entretenimento, foram sonegados a milhões de pessoas nas grandes cidades.
O resultado desse modelo de “desenvolvimento desigual” é bastante conhecido, em especial nas regiões metropolitanas que hoje abrigam quase metade da população brasileira: grave desigualdade socioespacial refletida em cidades divididas e fragmentadas, onde impera a lógica perpétua da simultaneidade entre espaços legas, formais, regulares e altamente desenvolvidos, concomitante aos territórios precários e segregados, caracterizados pela exclusão de amplos setores do acesso aos direitos básicos da cidadania. Também são conhecidas as consequências ambientais, raciais e de violência estimuladas pelo modelo. Nesse contexto de desigualdades sócio-urbanas, a nascente redemocratização abriu as portas para a criação de uma nova institucionalidade democrática e participativa, iniciada pela Constituição de 1988, e continuada pelos estados e municípios. Impulsionado por atores sociais das classes populares e pela liberdade na esfera partidária, o regime político adotado foi o da democracia alargada em dois níveis: o político eleitoral, com a competição entre os partidos, e o da participação social, pela cidadania ativa em torno de políticas públicas.
De forma inédita, a democracia que nasceu em 1988 é a de tipo eleitoral-participativa, ou seja, participação eleitoral ampliada (todos tem direitos políticos a partir dos 16 anos) e participação cidadã, que independe do sistema eleitoral porque se dá na esfera do social em contato com as instituições do Estado. Essa participação ocorre tanto em moldes institucionalizados das interfaces socioestatais, como também nas formas de ação coletiva da sociedade civil, por meio do associativismo pluralista. Nesse regime democrático, a cidadania adquiriu pleno direito de participar da elaboração, decisão e da execução das políticas públicas que afetam a vida de grupos específicos ou de todos que compõem a nação.
Nesse sentido, o regime democrático brasileiro – para o desgosto dos projetos autoritários, elitistas e conservadores, que perderam o controle em 1988 – é balizado também por múltiplas instituições participativas da cidadania, ao lado das instituições clássicas de representação política, que são naturalmente insubstituíveis. Exemplo clássico da dupla dimensão de nossa democracia, política e social, foi o processo nos anos 1980 que originou o SUS, sistema único de saúde. Ele conta com conselhos de representação social em todos os municípios e estados da federação, além do Conselho Nacional de Saúde. São instâncias de controle social obrigatórias inclusive para o repasse dos recursos aos entes subnacionais.
A destruição da democracia participativa pelos governos Marchezan (PSDB) e Melo (MDB)
A democracia ampliada inaugurada em 1988 teve no poder local um palco privilegiado para a inovação democrática. Governos de muitas metrópoles, em conjunto com atores da sociedade civil, construíram sistemas de gestão democrática das cidades, indo ao encontro das bandeiras históricas de reforma urbana que associavam a participação cidadã às possibilidades de efetivar políticas públicas redistributivas e de universalização do bem-estar urbano.
Porto Alegre se destacou com a criação do Orçamento Participativo (OP), reconhecido nacional e internacionalmente e disseminado pelo mundo. Mais de 400 cidades, inclusive metade das grandes metrópoles do país, adotaram esta inovação democrática. O OP permite a inclusão de setores populares nas decisões sobre as prioridades orçamentárias, quebrando o monopólio do poder de decidir onde e como aplicar os recursos de investimentos apenas por meio da representação política clássica do Executivo e Legislativo. Os ganhos democratizantes do OP, em termos sociais e políticos, são conhecidos por estudos acadêmicos nacionais e estrangeiros e de instituições de financiamento como o Banco Mundial.
Além do método para promover a discussão dos recursos, a gestão participativa de Porto Alegre contou com a criação de quase trinta Conselhos de Políticas Públicas e instâncias participativas no sistema de Planejamento Urbano, por meio do Conselho do Plano Diretor. Essa tríade da gestão participativa, constituída pela incidência cidadã no orçamento, nas políticas setoriais e no planejamento urbano foi objeto de cinco Congressos da Cidade e dezenas de conferências entre 1989 e 2016, fazendo com que a cidade na década de 1990 despontasse no cenário de renovação do ideal democrático em termos nacionais e mundiais. Por isso ela sediou o Fórum Social Mundial em quatro oportunidades, desde 2001.
A partir do início dos anos 2000, a trajetória democratizante da cidade entrou em rota contrária. Cada vez mais o que se vê é o retrocesso da participação cidadã na gestão pública. Esse ciclo iniciou com a criação da Governança Solidária Local, um programa paralelo ao OP, entre 2005 e 2016, implementado pela coalizão liberal-social vitoriosa nas eleições de 2004. Depois, ganhou fôlego com os ataques aos Conselhos e ao OP pela gestão neoliberal de Marchezan (PSDB). Mas não há dúvidas de que esse retrocesso está se acelerando e intensificando a partir do governo ultraliberal de Melo (MDB), que vem enfraquecendo, desfigurando e tentando deslegitimar a democracia participativa nas três modalidades que constituem a arquitetura inovadora da participação cidadã em Porto Alegre.
Em relação ao OP, a administração de Melo vem destinando um pouco mais de 1% ano dos recursos de investimentos para atender demandas das comunidades das periferias, sendo a grande maioria das obras e projetos ainda oriundos do passivo de mais de 2,3 mil demandas não executadas, desde 2002. Na prática, o OP não existe mais como espaço compartilhado com a cidadania para decidir a alocação dos recursos públicos. Na esfera dos Conselhos, Melo está retirando seu poder de influência e decisão, como fez no caso da Saúde e da Educação, e agora está tentando no transporte coletivo. A intenção declarada é suprimir esta esfera de representação da sociedade nas políticas públicas, repetindo a intenção manifestada anteriormente por Marchezan (PSDB), em seu projeto de mudança da lei orgânica da cidade. E por fim, o retrocesso é visível também no sistema de planejamento urbano e ambiental, onde a Prefeitura, agora confrontada com a obrigatoriedade de revisão do Plano Diretor, utiliza-se de artimanhas visando diminuir o debate público e o direito de ampla participação na decisão das normas de ocupação e uso dos espaços urbanos, públicos e privados. Dentre outras situações restritivas, ocorreu a exclusão arbitrária da Ufrgs na rediscussão do plano.
Como explicar esse retrocesso? São várias as causas que incidiram na mudança do contexto político na direção da desdemocratização de Porto Alegre. Todavia, não resta dúvidas que o novo ciclo autoritário ocorre com a implementação do projeto neoliberal de cidade, desejado explicitamente por Marchezan e agora radicalizado e intensificado por Melo. Porto Alegre vive hoje a sanha privatista da gestão e das formas de ocupação, produção e uso dos espaços, demonstrando na prática o que é o modelo de “empresariamento” da cidade já descrito e estudado mundialmente[i]. Esse projeto institui um regime urbano totalmente pró-mercado, em especial do setor imobiliário. E seu caráter antipopular e extrativista colide com as demandas por ampliação do bem-estar urbano e as exigências de sustentabilidade ambiental que ocorrem nos espaços de participação. Não é possível implementar o programa ultraliberal pró-mercado com ampla participação social institucionalizada, por isso a tendência cada vez mais autoritária da gestão local.
Não estranha, portanto, a adesão de Melo à coalizão bolsonarista, representada também pelo vice-prefeito, e por uma maioria de vereadores. A rearticulação conservadora e clientelista dos poderes Executivo e Legislativo - típica da democracia elitista – está enterrando a democracia participativa em Porto Alegre, retrocedendo, portanto, ao modelo político anterior à Constituição de 1988. Talvez em poucos momentos na história da metrópole as contradições de classe estiveram tão explícitas no cenário político local. Esse é o tamanho do desafio colocado ao campo democrático, popular e progressista em 2024.
[i] HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio", Espaço e Debates, ano XVI, n. 39, 1996, p. 48-64.
* Luciano Fedozzi, Professor de Sociologia da UFRGS, pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre ([email protected]).
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko