A apresentação oral de Francisco (Xico) Graziano Neto na CPI sobre o MST fez uso seletivo e distorcido de artigos acadêmicos publicados para tentar legitimar suas convicções sobre a reforma agrária. Avançou em afirmações e conclusões que não têm fundamento nesses artigos, sem esclarecer que correspondiam a elaborações de sua própria autoria, a ampla maioria delas sem critérios, referências e fontes científicas conhecidas.
Xico Graziano omitiu dados e conclusões dos artigos citados que demonstram com base nos dados que ele considerou válidos, que os assentamentos são fontes importantes de geração de empregos e de renda no meio rural.
A apresentação oral de Francisco (Xico) Graziano Neto, convidado da Audiência Pública da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), foi realizada em em 13 de junho de 2023 e está disponível neste link, entre o período 2h09min57s e 3h59min51s.
Na condição de autores de dois dos estudos citados por ele, e sem acesso ao documento escrito entregue pelo convidado à CPI, temos a esclarecer sobre essa apresentação:
1. Segundo o estudo Aspectos orçamentários e financeiros da reforma agrária no Brasil 2000-2005, o custo médio para assentamento de uma família em 2004-2005 ponderado pelo número de famílias assentadas em cada região e pela forma de obtenção, foi de R$ 31,0 mil em valores de 2005 (MARQUES, 2007, p. 73). O valor de R$ 39,1 mil citado pelo convidado corresponde à média para o país, sem considerar o peso relativo de cada região e modalidade de obtenção. Esse custo médio inclui despesas para obtenção da terra, implantação (créditos e assistência técnica iniciais) e desenvolvimento (crédito subsidiado, Pronaf).
O valor médio ponderado para o assentamento de uma família atualizado entre dezembro de 2005 e dezembro de 2022 é igual a R$ 62,2 mil quando corrigido pelo IPCA, do IBGE.
2. Em 2004-2005 as despesas médias relativas somente à obtenção das terras (ações preparatórias, pagamento da terra e de benfeitorias) para o assentamento de uma família foram de R$ 21,1 mil no caso de desapropriações e de R$ 47,9 mil no caso de aquisições (MARQUES, 2007, p. 67). Isso corresponde, respectivamente, a R$ 54,1 mil e R$ 122,7 mil em valores atualizados para dezembro de 2022 pelo IPCA.
Os valores citados pelo convidado de R$ 145,0 mil, em média, para obtenção de terras e de R$ 217,0 mil, em média, para os custos totais em 2023, caso tenham se baseado nesse estudo, não indicam o deflator utilizado (a correção seria superior à variação do IGP-M). Caso não tenham se baseado nesse estudo, não mostram a fonte utilizada por ele.
4. Em dezembro de 2005 o valor médio ponderado para assentamento de uma família por tempo indeterminado correspondeu a aproximadamente 103 salários mínimos mensais vigentes, o que contrasta com o valor de 169 salários mínimos apresentados pelo convidado após a suposta aplicação de outros deflatores que não o IPCA.
5. O convidado não abordou a relação entre as despesas para o assentamento de famílias e os seus benefícios para essas pessoas e para a sociedade, que constam do mesmo estudo citado. Esse estudo revela que a Agricultura Familiar (incluída a assentada), foi a atividade que mais gerou emprego quando do aumento da demanda (MARQUES, 2007, p. 79-80). Segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (Fipe/USP), em 2002, a cada aumento de R$ 1 milhão na demanda final, a Agropecuária Familiar gerou 213 empregos (ocupações), sendo 136 de forma direta, 31 de forma indireta e 46 de forma induzida. Esse valor foi superior ao da Agropecuária Não Familiar (84 empregos), Construção Civil (81) e de Automóveis, Caminhões e Ônibus (55), entre outros setores. Ou seja, em valores de 2005, a Agricultura Familiar gerou uma ocupação a cada R$ 5,7 mil nela gerado, enquanto, por exemplo, na Agropecuária Não Familiar e na Construção Civil isso ocorreu a cada R$ 14,4 mil.
6. O artigo Um retrato da reforma agrária na região Sul do Brasil com base no Censo Agropecuário 2017, citado pelo convidado, mostra que a Renda Familiar Bruta anual média de cada estabelecimento da reforma agrária no Brasil foi de R$ 19,6 mil. Além dela, esses estabelecimentos receberam, em média, R$ 4,9 mil de Aposentadorias e Pensões e R$ 0,8 mil de Programas Governamentais (MARQUES; FRANÇA; DEL GROSSI, 2022, p. 56, Tabela 12). O artigo subestimou a renda dos estabelecimentos da reforma agrária, pois não considerou as rendas decorrentes do valor agregado pelas agroindústrias rurais por não existirem dados adequados para isso. Também por esse motivo não fez o cálculo da Renda Familiar Líquida.
Na audiência o convidado apresentou outra tabela do mesmo artigo (MARQUES; FRANÇA; DEL GROSSI, 2022 p. 55, Tabela 11) para calcular a média das rendas e das receitas, mas considerou um número diferente de estabelecimentos, sem citar qual a outra fonte utilizada por ele. Com isso, obteve o valor médio de R$ 11,5 mil por ano. Desse valor, efetuou o desconto de 70% a título de “custos”, também sem citar a fonte considerada, e com isto apurou o valor de R$ 3,5 mil de uma suposta renda familiar “líquida” média entre os(as) assentados(as) em nível nacional. Os valores citados por ele como relativos à chamada “renda não agrícola” anual (R$ 4,5 mil) também não constam do artigo citado e não possuem fonte conhecida. O critério utilizado pelo convidado para classificar as rendas e receitas dos estabelecimentos é diferente do previsto na Lei nº 11.326, de 2006, e nas suas normas complementares, e utilizado pelo IBGE.
7. Ou seja, ao contrário do que apresentou o convidado, sem qualquer fonte conhecida, é errado afirmar que, segundo o artigo realizado a partir do Censo Agropecuário 2017, nos estabelecimentos da reforma agrária a chamada “renda não agrícola” foi superior à Renda Familiar Bruta para a média do País.
8. O convidado omitiu uma das principais conclusões do artigo citado por ele que comparam os estabelecimentos da reforma agrária com os seus vizinhos semelhantes no seu entorno imediato (município) (MARQUES; FRANÇA; DEL GROSSI, 2022, p. 56, Tabela 13). A primeira grande evidência é que os assentamentos são uma grande fonte de emprego no campo: em 82% dos municípios analisados no país, o número médio de pessoas ocupadas nos estabelecimentos da reforma agrária foi significativamente maior ou igual ao de seus vizinhos. Esses resultados vão ao encontro de extensa literatura que aponta para os benefícios da reforma agrária. Essa superioridade ocorreu em todas as Unidades da Federação, especialmente nas Regiões Sul (91% do total) e Sudeste (90%). Não somente em termos de ocupação, mas também como fonte de renda, os assentamentos se sobressaem. Na média nacional: em 55% dos municípios o Valor Bruto da Produção médio foi significativamente maior ou igual ao de seus vizinhos. Essa vantagem foi maior nas Regiões Sul (60%), Nordeste (59%) e Norte (55%). Quando se analisam as receitas com a comercialização da produção, o quadro é muito próximo: em praticamente a metade (49%) dos municípios o valor médio das suas Receitas foi significativamente maior ou igual ao de seus vizinhos. Essa proporção foi especialmente maior na Região Sul (55%).
9. O convidado compara o valor das despesas para assentamento de uma família apurado em 2005 e corrigido por ele para 2023 (sem deflator conhecido) com o valor das rendas e receitas anuais apurado em 2017, mas sem a devida correção para 2023. Isso faz com que as despesas sejam sobrestimadas e as rendas e receitas, subestimadas, o que resulta em um viés para a análise.
10. Ao contrário do que afirmou o convidado em sua apresentação oral, o estudo sobre os estabelecimentos da reforma agrária a partir do Censo Agropecuário não utilizou os CPFs das pessoas assentadas. O método aplicado está nitidamente descrito na terceira parte do artigo citado por ele (MARQUES; FRANÇA; DEL GROSSI, 2022, p. 44-46). Os dados produzidos e fornecidos pelo IBGE, inclusive as tabulações especiais, não identificam os CPFs das pessoas entrevistadas pelo Censo em estrito respeito à legislação sobre a proteção de dados pessoais e sobre o sigilo estatístico.
11. O artigo citado pelo convidado foi elaborado a partir de dados de um estudo de abrangência nacional realizado por meio do Acordo de Cooperação entre o INCRA e o IBGE. O relatório desse estudo Estabelecimentos da reforma agrária no Censo Agropecuário 2017, de agosto de 2021, foi acolhido pelo TCU para efeito do cumprimento do item 9.8.2 do Acórdão/TCU/nº 1.976/2017-Plenário. Esse item previu a apresentação, pelo INCRA, de indicadores sobre a eficiência, eficácia e efetividade da política pública de reforma agrária, inclusive quanto aos aspectos dos (i) “níveis de produtividade alcançada nos assentamentos”; “tipo e grau de exploração de atividades agropecuárias pelos assentados”; e “autossustentabilidade desses assentamentos, no que tange ao objetivo de garantia de renda mínima para subsistência com a exploração da terra e de promoção do bem-estar dos trabalhadores assentados, com a fixação do homem na terra e sua contribuição para o desenvolvimento econômico sustentável”.
12. As distorções na leitura dos dados dos artigos mencionados pelo convidado não invalidam a sua sugestão de aperfeiçoamento das pesquisas oficiais para identificar as especificidades das informações relativas aos estabelecimentos da reforma agrária.
* Vicente P. M. de Azevedo Marques, doutorando no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/Ufrgs); Caio Galvão de França, doutorando no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/Ufrgs) e Mauro Eduardo Del Grossi, professor da Universidade de Brasília (UnB).
Referências
MARQUES, Vicente P. M. A. Aspectos orçamentários e financeiros da reforma agrária no Brasil 2000-2005. Brasília: MDA, INCRA, 2007. 103 p. (NEAD Estudos, 18). Disponível em: https://repositorio.iica.int/handle/11324/20094
MARQUES, Vicente P. M. de A.; França, Caio G. de; Del Grossi, Mauro Eduardo. Um retrato da reforma agrária na região Sul do Brasil com base no censo agropecuário 2017. DRd - Desenvolvimento Regional Em Debate, nº 12 (ed. esp. Dossie), p. 38–64, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.24302/drd.v12ied.esp.Dossie.3889
** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko