Eu sou com, como dizem os povos originários. Eu tento viver em comunhão. Com redes, com afetos
Eu não. Mas não pelo fato de estar dentro de uma relação com um homem, mas comigo.
Com migo.
Amo trocadilhos, sempre acho que eles revelam algo que a língua, na sua primeira leitura, esconde. Ou oculta para quem não se dá ao tempo de (re)parar.
Veja só, reparar. Por um lado, precisamos de tantas reparações.
Sim, também com a língua (e todas as línguas) e com a linguagem. Por que seguir reproduzindo frases prescritas pela ideologia do patriarcado? Para nos trancafiar num casamento heterossexual? Dizer que somos sozinhas assusta muitas mulheres. Parece uma sina ontológica, ou seja, que vai ao ser a essência da pessoA. (Escrevo pessoA com A maiúsculo porque acredito que isso acontece não só com as mulheres, mas também com as lésbicas (e outrxs seres) que não se tornaram mulheres – como é meu caso – e com não binaries ou vidas lidas como mulheres.)
Pelo outro, precisamos parar e ver, ou seja, reparar. Repara! Estou falando contigo. Sim. Com tigo. Vejo que você já sacou por onde vamos.
Quem é que vai dizer que uma “mulher” que não está nem casada, nem namorando, é sozinha?
O patriarcado.
Este sistema de dominação precisa nos encurralar, que tenhamos medo, porque senão, ahhh senão, tudo pode nos acontecer se não temos um omi do lado.
Sabem o que pode nos aconteSER?
Ser solteiras. Soltas, livres. Ter pensamento próprio.
E andar em redes com as amigas e companheiras sem um roteiro feito pelo CIStema. E aí sim, que arda tudo! O medo maior deles é que a gente se sinta livre para pensar e criar outros/nossos mundos. Não uni, mas PLURIversos de nos-outras.
Muitas/es de nós, feministas, não lutamos pela igualdade. Coisa chata ser igual a eles, aliás, teríamos que investir MUITO tempo em aprender a sair e estuprar e matar homens. Não, não é isso que muitas/es de nós queremos. Mas pensar e criar outros mundos, outra humanidade, como já estamos fazendo. Para isso precisamos de espaços nossos, de liberdade e sim, andarmos sozinhas quando assim o desejarmos sem que ninguém nos rotule de sermos sós.
(E se em lugar de nos fecharmos no casal, nos abrimos...)
Considero que há uma diferença bem grande entre que nos rotulem de fora e que nos nomeemos desde dentro.
Por exemplo, quando as lésbicas nos chamamos de sapatão. Muitas pessoas dizem que não é necessário pôr palavras, que todOs somos humanOs. Eu não. Eu sou humana. Acho essa, uma estratégia de apagamento, de eliminação. Existem muitos tipos de humanidades e eu não quero ser apagada, nem encerrada numa letra O. Aliás, quem diz isso, geralmente são os homens, assim como quando se fala de racismo, ou na cor das pessoas, quem acaba com a fala, muitas vezes é uma pessoa branca que não quer perder seus privilégios de “raça superior”. O que se visibiliza é o que se tenta apagar em nome da “Paz mundial”, “Amai-vos uns aos outros”, “todos somos humanos”. Assim, sempre em masculino, e se possível bem branco e hétero e burguês.
Eu acho muito ricas nossas diferenças, por isso, tanto a bandeira do movimento LGBTQIA+, quanto o Wiphala, símbolo da união das nações andinas, levam as cores do arco-íris, representadas de maneiras diferentes. Depende de como encaremos essas nossas diferenças pode ser muito rico.
Será que a gente fala em diferenças, ou em pluralidades? Esta descentraliza, não reconhecendo hierarquias, não há o UM e a OUTRA, há um nós por inteiro, cheio de nós a desamarrar.
Como dizia, as estratégias de apagamento, de mandar a calar a boca, de querer impor as próprias palavras e ideias mostra que a pessoa que está falando, está querendo impor sua visão pequena e autoritária. E se nos ouvirmos mais? Só temos a ganhar.
Eu não sei se é pela idade, mas conforme passa o tempo, vou sentindo mais a necessidade de escuta. Reconheço que precisei muito de falar porque foi também falando e nomeando, que fui construindo meu pensamento, mas estamos em uma época em que poucas pessoas estão dispostas a ouvir e a maioria quer só emitir. Não dialogar. Isso para mim é ser ou estar sozinha.
Então, eu posso ser vista como sozinha, como já me falaram muitas vezes, pelo fato de não estar junto a um homem, nem atualmente a uma mulher, mas eu estou muito longe de ser sozinha.
Eu sou com, como dizem os povos originários. Eu tento viver em comunhão. Com redes, com afetos. Também com a natureza e outros seres chamados de não-humanos.
mariam pessah : ARTivista feminista, escritora e poeta, autora de Em breve tudo se desacomodará, 2022; organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre desde 2017 e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta.
* Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko