O arcabouço fiscal, tal como desenhado, impõe uma trava ao fortalecimento do Estado para o futuro
É preciso crescer para poder gastar, mas é preciso gastar para poder crescer. Esse é um dilema que surge com a vinculação do crescimento dos gastos ao crescimento da arrecadação como propõe o novo arcabouço fiscal. O governo encaminhou ao Congresso Nacional o PLP 93/2023, apresentando proposta para um novo marco fiscal, em substituição à regra do congelamento dos gastos estabelecido pela Emenda Constitucional 95 de 2016. Com essa nova regra, o governo restabelece a possibilidade de aumentar os gastos, mas condiciona essa possibilidade a um aumento maior de arrecadação, submetendo-se, portanto, à lógica da manutenção do superávit primário.
Essa proposta é resultado das negociações realizadas para a aprovação da PEC da transição (Emenda Constitucional 126/2022), que autorizou a ampliação de mais de R$ 140 bilhões nos gastos, para o ano de 2023. Em contrapartida, o governo se comprometeu a apresentar, até 31 de agosto de 2023, o projeto de um regime fiscal sustentável (Artigo 6º da EC 126/2022), que passará a vigorar a partir de 2024. Esse novo marco fiscal, segundo a Emenda Constitucional, deverá garantir a estabilidade macroeconômica do país e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico.
Por essa regra, os gastos do governo não poderão crescer mais do que 70% do crescimento da arrecadação, limitado ainda a 2,5%, acima da inflação. Ou seja, se houver um crescimento real de arrecadação de 5%, os gastos poderiam crescer 3,5%, pelo primeiro limite, mas o subteto impõe que esse crescimento fique restrito aos 2,5%. Por outro lado, e esse é um ponto positivo do arcabouço fiscal, os gastos não podem crescer menos do que 0,6% acima da inflação a cada ano. Ou seja, em relação à EC 95/2016, essa garantia de crescimento real, entre 0,6% e 2,5%, embora modesto, significa uma conquista importante.
Na mesma medida, o governo restabelece o piso constitucional para os gastos com saúde e educação, de 15% da receita corrente líquida e de 18% da receita líquida de impostos, respectivamente. Essa é também uma boa notícia, pois esses dois limites estavam suspensos, desde 2017, por conta do congelamento dos gastos promovido pela EC 95/2016. Somente em 2019, a educação perdeu cerca de R$ 32,6 bilhões e a saúde, R$ 9,5 bilhões, de recursos, em decorrência da inobservância destes pisos constitucionais.
Por exigência do presidente Lula, a nova regra também não deve implicar restrições ao aumento real do salário mínimo. Por um lado, esse destravamento dos gastos para essas áreas essenciais é uma medida muito bem-vinda e que precisa ser comemorada. Por outro, precisamos ter em conta que essas garantias poderão restringir de forma muito relevante a possibilidade de ampliação das demais despesas.
Ao garantir que o crescimento dos gastos com saúde e educação se dê na mesma medida do crescimento da arrecadação, para que o crescimento da totalidade dos gastos não ultrapasse aos 2,5%, será necessário limitar o crescimento dos demais gastos. É razoável supor, inclusive, que poderá haver situações em que os demais gastos tenham que ser até mesmo reduzidos de um ano para o outro para poder manter o crescimento geral dos gastos nos limites estabelecidos. Ou seja, a parte boa do arcabouço, que é a liberação dos gastos essenciais, não poderia se converter em trava para a ampliação da capacidade de gastos do governo. Senão, vai acabar sendo usada como justificativa para propostas que já têm sido cogitadas de revogação de conquistas históricas dos movimentos sociais, como o estabelecimento de piso constitucionais para gastos com saúde e educação, por exemplo.
A garantia de crescimento real para o salário mínimo vai implicar a necessidade de crescimento também dos gastos previdenciários acima dos limites estabelecidos, concorrendo também para achatar os demais gastos. Importante observar que, em 2022, quase 70% dos gastos correntes do governo federal estavam concentrados na previdência, na saúde e na educação.
Além disso, o governo assume o compromisso de zerar o déficit fiscal em 2024 e de promover superávit de 0,5% do PIB, em 2025 e de 1%, em 2026, sob pena de ter que se submeter a regras ainda mais rígidas para os anos futuros. O que aponta, necessariamente, para dois caminhos, não excludentes entre si, do aumento de arrecadação e ou da redução de gastos. A projeção de déficit fiscal para 2023, de aproximadamente R$ 107 bilhões, dá a dimensão do desafio assumido.
Sabemos que o crescimento da arrecadação tributária depende de muitos fatores, mas é fortemente influenciado pelo crescimento econômico. Logo, o governo poderá gastar mais quando houver maior crescimento e, ainda assim, não poderá ultrapassar a 2,5% em relação ao ano anterior, e menos em períodos de baixo crescimento. No entanto, é nos períodos de baixo crescimento econômico que deveria poder ampliar os gastos, ou seja, aplicar uma política fiscal anticíclica, pois o aumento de gastos públicos em períodos de crises contribui para mitigar e abreviar as crises.
A história recente nos mostra que os períodos de maior crescimento da economia coincidem com os períodos em que o governo mais gastou. Os dois primeiros governos Lula e o primeiro governo Dilma tiveram crescimentos reais de gastos superiores a 5% ao ano e foram, justamente os períodos de maior crescimento econômico que tivemos nos períodos recentes.
Em 2023, por conta da aprovação da já citada PEC da transição, a expectativa de crescimento dos gastos é de 6% acima da inflação e, não há dúvidas, de que esses gastos, necessários para garantir o aumento real para o salário mínimo, a ampliação do bolsa família e a retomada de diversos projetos que estavam parados, serão determinantes para impulsionar positivamente a atividade econômica.
O arcabouço fiscal, tal como desenhado, impõe uma redução do nível de crescimento dos gastos e uma trava ao fortalecimento do Estado para o futuro. Talvez isso explique sua aprovação por uma maioria assustadora de votos na Câmara dos deputados, de 372 votos contra apenas 108 votos contrários.
Para que esse novo marco fiscal cumpra seu objetivo de criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico, como dispõe o Artigo 6º da EC 126/2022, é fundamental que a possibilidade de crescimento dos gastos não seja afetada pela sustentabilidade dos gastos com saúde e educação, nem com a política de valorização do salário mínimo. Portanto, os valores aplicados nas políticas de saúde e de educação até o piso estabelecido na Constituição, assim como a correção dos gastos previdenciários decorrentes da correção do salário mínimo, devem ser retirados da base de cálculo utilizada para aplicação dos limites de crescimento dos gastos estabelecidos nesse novo arcabouço fiscal. Essa deve ser uma das bandeiras de lutas dos movimentos sociais e dos trabalhadores.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira