Infelizmente, a era do cinismo tem nos mostrado que o absurdo é cada vez mais aceito
Há alguns dias, lendo o excelente artigo do Thiago Canettieri publicado na Revista Porto Alegre, tive contato com um texto escrito pelo Vladimir Safatle em novembro de 2018. Em “Claro como o sol”, o filósofo comenta algumas declarações de Jair Bolsonaro, que recém havia sido eleito presidente. Essas declarações mostravam as intenções do novo governante de forma tão explícita que fugiam do padrão da democracia liberal.
Safatle começa seu artigo discutindo a diferença estrutural entre hipocrisia e cinismo. Segundo ele, “a hipocrisia é uma operação de mascaramento de intenções. Ela é a utilização de proposições socialmente compreendidas como corretas para mascarar interesses inconfessáveis. Nesse sentido, ela precisa impedir que as reais intenções sejam enunciadas. Há uma contradição que deve ser escondida e continuamente negada. Nesses casos, quando você expõe as reais intenções do enunciador, a hipocrisia é desvelada e as proposições entram em colapso. Foi assim que a democracia liberal funcionou até hoje”.
O governo Bolsonaro seria um momento de mudança política da predominância da hipocrisia para o cinismo. De acordo com Safatle, “o cinismo é uma operação de desvelamento das reais intenções na qual a contradição, mesmo sendo exposta, não produz nenhum efeito. Expor as contradições de nada adianta, pois as palavras estão lá para serem ignoradas. Nesses casos, todo regime autoritário tem traços cínicos”.
Bolsonaro perdeu as últimas eleições, mas seu legado permanece. E as discussões sobre o plano diretor de Porto Alegre e outras políticas urbanas da cidade mostram que, embora a hipocrisia ainda esteja bastante presente, o cinismo ganhou força nos últimos anos. Antes as alterações feitas na legislação urbanística para beneficiar o mercado eram vendidas como benéficas a toda a sociedade. Já os críticos da mercantilização da cidade tentavam mostrar que a maioria da população era prejudicada por essas mudanças. Afinal, “quando você expõe as reais intenções do enunciador, a hipocrisia é desvelada e as proposições entram em colapso”.
Mas na Porto Alegre de Sebastião Melo as reais intenções muitas vezes nem são disfarçadas e talvez a forma de fazer a crítica a essas intenções também precise mudar. Há alguns dias o próprio prefeito definiu o seu governo da seguinte forma: “Somos uma grande imobiliária”. Será que, nesse contexto, denunciar que a prefeitura beneficia o setor imobiliário ainda tem algum efeito político?
Exemplos não faltam. Em abril, o urbanista Alain Bertaud veio para Porto Alegre para participar do Fórum da Liberdade. Ele deu uma entrevista à Zero Hora que teve bastante repercussão devido à sua defesa de que a gentrificação era um fenômeno positivo para a preservação de centros históricos. Melo gostou da entrevista e dois dias depois convidou Bertaud para uma reunião com a equipe da prefeitura responsável pelo Plano Diretor. Nenhuma novidade, já que em 2021, quando foi lançado o “Programa de Reabilitação do Centro Histórico”, o secretário de Planejamento e Assuntos Estratégicos de Porto Alegre, Cezar Schirmer, disse, em entrevista ao Sul21, que “não adianta trazer um morador para o Centro que não possa pagar o condomínio”.
Pode parecer que essa nova conjuntura, em que os governantes admitem publicamente que suas políticas são pensadas para os mais ricos, facilita o trabalho daqueles que lutam contra essas políticas. Infelizmente, a era do cinismo tem nos mostrado que o absurdo é cada vez mais aceito e que, se continuarmos achando que a direita vai ser derrotada por si só, apenas por ter cometido inúmeros “sincericídios”, continuaremos sofrendo derrotas.
* André Coutinho Augustin, economista e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira