Com rostos e corpos pintados, cocares e colares tradicionais, centenas de indígenas de diversas partes do estado reuniram-se, no final da manhã desta quarta-feira (7), no Largo Glênio Peres, no centro de Porto Alegre, para dizer não ao marco temporal das terras indígenas. Cartazes, faixas e cruzes pretas alertavam para o prejuízo que a tese defendida por ruralistas pode trazer aos povos tradicionais do país.
O protesto soma-se a outros que ocorreram de norte a sul do país para demarcar a posição dos indígenas no dia em que o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou a análise do marco temporal. Também critica o PL 490, projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados em 30 de maio e que será votado no Senado, que prevê que indígenas têm direito apenas às terras que ocupavam a partir de 1988.
Na retomada do julgamento no STF, o ministro Alexandre de Moraes votou contra a tese. A discussão do tema, entretanto, foi suspensa após pedido de vistas do ministro André Mendonça. O julgamento se encontra com dois votos a favor dos povos indígenas e um contra.
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Após concentração em frente ao Mercado Público, os indígenas e apoiadores que marcaram presença deslocaram-se até a Esquina Democrática para assistir ao julgamento. Segundo a organização, o objetivo da manifestação é dizer à população e ao STF que o julgamento deve respeitar os direitos constitucionais, assegurando aos povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais os seus direitos originários sobre as terras.
A mobilização foi articulada pelas comunidades indígenas das etinas Kaingang, Mbyá Guarani, Xokleng e Charrua. Apoiaram o Conselho Estadual dos Povos Indígenas do RS (CEPI), a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul), o Conselho de Articulação do Povo Guarani no Rio Grande do Sul (CAPG), além de instituições, organizações e entidades que se colocam ao lado dos povos indígenas.
Liderança Kaingang da aldeia Fàg Nhin, da Lomba do Pinheiro, Moisés Silva conta que estiveram presentes comunidades da Região Metropolitana de Porto Alegre, do Vale do Taquari, da Serra gaúcha e de outas regiões. Ele resume o que os presentes no ato entendem com relação ao marco temporal: “é um retrocesso contra os direitos dos povos indígenas e suas ancestralidades”.
Segundo a liderança, a luta dos povos para conseguir manter sua cultura acontece há 523 anos no Brasil e “chegou o momento de uma grande decisão que está na mão do STF”. Ele destaca que a demarcação de terras é fundamental para a vivência dos indígenas e suas crianças, além de ser uma luta em defesa do meio ambiente, dos rios e matas “que estão sendo devastadas”. “Então a gente não defende só o nosso território, a gente defende o meio ambiente e a respiração do Brasil todo e de todo o ser humano”, afirma.
Moisés comenta também sobre a “grande conquista” que é o Ministério dos Povos Originários e a atuação de indígenas na Secretaria de Saúde Indígena e na Funai. “A gente está ainda nas articulações de ocupar todos os espaços que são de direito dos indígenas porque a gente até hoje teve tudo decidido pelos não indígenas.”
Líder do povo Kaingang que habita o Morro Santana na Retomada Gãh Ré, a cacica Iracema Gãh Té Nascimento pontua que o marco temporal é contra quem vive na natureza e que quem está em perigo não é somente os indígenas, mas todos os que vivem da terra. “Esta lei que eles estão fazendo libera toda a exploração da terra, explorando os minérios, jogando veneno na terra que desce nas nossas águas que nós bebemos.”
“Por que estamos cheios de câncer no corpo, na pele? É este veneno jogado no ar e na alimentação, na terra. E está indo para a água que a gente bebe, água que é nossa vida, que é de todos”, reforça.
A cacica ressalta que os povos indígenas entendem que a terra é de todos, motivo pelo qual há essa tentativa de retirar seus territórios. “Queremos direitos nossos de ter a terra, direito de ter o mato, de ter a água livre. Por isso vamos tentar anular este marco temporal que é contra a nossa constituição”, diz.
Vindo da Tekoa Yvy'ã Poty, aldeia Mbyá Guarani de Camaquã, Cristiano de Souza, conhecido como Cristiano Paraeh, saúda a presença de “todos os parentes”, referindo-se às diversas etnias presentes, para dizer não à proposta que restringe o direito à demarcação de terras indígenas.
“O marco temporal vai afetar todos os povos indígenas, as demarcações e as vivências dos povos indígenas. E a gente só quer viver em paz nas nossas terras”, assinala, defendendo que os povos originários têm direito ao seu território, mesmo que muitos digam o contrário: “Nós somos os verdadeiros donos desta terra”.
Da comunidade Por Fi Ga, de São Leopoldo, Sueli Kaingang conta que vive junto de 315 pessoas em um território de dois hectares. Para ela, o julgamento no STF é um momento muito importante. “Isto definirá como se nós indígenas não estivéssemos aqui antes de 1988, afeta nosso futuro, o futuro das nossas crianças”, afirma.
Para ela, é um “projeto da morte” porque, sem os territórios, não será possível trabalhar uma educação ou uma saúde diferenciada aos indígenas. “Como vamos falar sobre vidas e sobre territórios indígena sem a demarcação de nossos territórios? A nossa principal fonte de luta hoje é a nossa principal fonte de vida. É impossível dizer eu aceitei esse marco temporal, são as nossas próprias vidas e as das nossas crianças que estão em jogo”, complementa.
Marco temporal afeta mais de 100 territórios no RS
Presente no ato, o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi Sul), Roberto Liebgott, tem ampla relação com as diferentes comunidades indígenas do Rio Grande do Sul. Segundo ele, a realizada no estado “é de absoluta vulnerabilidade em função do processo de desterritorialização pelo qual eles foram afetados ao longo de toda a colonização”.
Ele pontua que a tese do marco temporal impacta de forma definitiva a vida e o futuro dos povos de todo o país. “Por isso a importância desse julgamento e a necessidade de que haja por parte do STF a declaração de inconstitucionalidade desta tese.”
Roberto explica que se considerado constitucional, o marco temporal atinge mais de 100 territórios no estado, e quase todas as comunidades do povo Guarani. Ficam de fora somente algumas reservas áreas já demarcadas, principalmente as kaingangs, que foram criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
O indigenista ressalta ainda que, se houver rejeição do marco temporal por parte do Supremo, por consequência, torna-se inconstitucional do Projeto de Lei que introduz o marco temporal.
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Edição: Katia Marko