Ao demonizar os impostos, estão, de fato, defendendo a redução do Estado e das políticas públicas
Eles sempre voltam. Todos os anos, os defensores do Estado mínimo retomam a persistente campanha de doutrinação contra os impostos. Essa campanha é apresentada para a sociedade como o “Dia da Liberdade de Impostos”, como se os tributos fossem coisas das quais precisamos nos libertar. Mas, que liberdade poderia haver numa sociedade sem tributos? Certamente, para a maior parte da população isso significaria uma total ausência de liberdade, pois sem os tributos não haveria como se garantir as condições mínimas de uma existência digna. Que liberdade pode ter alguém sem acesso à saúde, à educação, à alimentação ou à moradia, por exemplo?
Mesmo depois do episódio da covid-19, que demonstrou de forma cristalina a importância que teve os serviços públicos, especialmente o SUS e as políticas de transferências de renda, para proteger a vida de milhões de pessoas e garantir a sustentabilidade da atividade econômica, eles continuam insistindo sempre no mesmo assunto de que os problemas do país são os tributos e o Estado.
Este ano, escolheram o dia 25 de maio e, nesta data, centenas de estabelecimentos comerciais, espalhados em diversos estados da Federação, venderam produtos sem impostos com o objetivo de demonstrar o quanto as pessoas estariam perdendo pagando impostos e quantas mercadorias elas estariam deixando de consumir por culpa do Estado. O irônico desta alegoria é que aqueles preços só foram reduzidos porque existe toda a estrutura do Estado funcionando e à disposição dos comerciantes. Se a retirada dos impostos significasse também a retirada do Estado, muito provavelmente esses preços sem tributos teriam que ser aumentados, pois os consumidores teriam que bancar a elevação de custos decorrentes das despesas com segurança, infraestrutura, regulação, iluminação pública, saúde e de outras inúmeras atividades exercidas cotidianamente pelo Estado.
O dia 25 de maio foi escolhido numa analogia forçada com uma suposta carga tributária. Essa data representa os primeiros 150 dias do ano, ou seja, aproximadamente 39% dos 365 dias, logo, segundo os promotores da campanha, a carga tributária brasileira seria de aproximadamente 39% do PIB e os brasileiros teriam trabalhado até esse dia apenas para pagar tributos. Eram muito comuns frases de campanha como essa: “até essa data você trabalhou só para pagar impostos para o governo e só a partir deste dia você poderá trabalhar para você”.
O primeiro equívoco, talvez intencional, é o de superdimensionar a carga tributária, em 39% do PIB. Já faz bastante tempo que a nossa carga tributária não passa de 33% do PIB e se situa, inclusive, abaixo da média das cargas tributárias dos países da OCDE, por exemplo.
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O que eles também não dizem, mas é importante que a gente perceba, é que, ao demonizar os impostos, estão, de fato, defendendo a redução do Estado e das políticas públicas. Evidentemente que os tributos sobre o consumo são elevados no Brasil e oneram muito mais os mais pobres do que os mais ricos e esse é um traço importante de injustiça da nossa tributação. No entanto, não há uma linha sequer, nesta campanha midiática, que proponha elevação de tributos para os mais ricos como forma de reduzir os tributos sobre os mais pobres, ao contrário, o que eles defendem é a simples redução dos tributos como forma de reduzir as políticas públicas.
Se fosse válida a analogia utilizada por eles, de considerar um percentual do ano como representativo do esforço que faz a sociedade para financiar as políticas públicas, poderíamos dizer então que durante essa terça parte do ano, a sociedade brasileira conseguiu a façanha de garantir recursos suficientes para financiar uma estrutura extremamente complexa de serviços públicos, e isso não é pouca coisa. Mais de 96% de todos os transplantes realizados no Brasil são feitos pelo SUS. Tratamentos de alta complexidade são realizados quase que exclusividade pela saúde pública. O SUS representa a única forma de acesso à saúde para mais de 75% da população brasileira. Os tributos pagos pelos brasileiros também financiam escola pública para mais de 80% das crianças em idade escolar, garantem benefícios previdenciários para mais de 36 milhões de pessoas, e mantêm um sistema carcerário com quase um milhão de presos. Essas e mais uma infinidade de outras políticas públicas são absolutamente essenciais para a sociedade brasileira.
Talvez a lembrança desta data devesse ser de reconhecimento por tudo o que o esforço coletivo da sociedade consegue financiar em termos de políticas públicas. São os tributos que nos garantem o direito de sermos atendidos nas situações de necessidades, como aquelas que ocorrem nos acidentes ou nas tragédias climáticas ou ambientais. Quem não lembra das imagens daquela estrutura complexa de serviços públicos que atuou na tragédia de Brumadinho e de Mariana, por exemplo?
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Muitos discursos contra os impostos ganham espaço durante essa campanha. Um dos mais recorrentes é o de que o nosso retorno pelo pagamento dos tributos é muito ruim e muito inferior ao retorno obtido nos países com cargas tributárias semelhantes à nossa. Sobre esse ponto, é importante esclarecer que o retorno não é definido pela carga tributária, mas pelo valor de arrecadação por habitante. Essa é a medida da capacidade do Estado para promover políticas públicas, ou seja, quanto ele dispõe de recursos para devolver a cada cidadão. No Brasil, a carga tributária proporciona um valor de aproximadamente 2,8 mil dólares por habitante por ano, e isso é quase cinco vezes inferior ao do Reino Unido, que tem uma carga tributária semelhante à nossa, mas dispõe de mais de 13 mil dólares por habitante. Em Portugal, o Estado dispõe de quase 7 mil dólares para investir em cada cidadão.
Não há dúvidas de que temos muitas urgências e muitos direitos ainda não estão sendo plenamente atendidos. Precisamos reduzir as desigualdades, erradicar a pobreza, combater a fome, ampliar e qualificar as políticas públicas e promover o desenvolvimento econômico e sustentável. Neste contexto, a campanha contra impostos presta um enorme desserviço à sociedade.
Assim, ao invés de demonizar os impostos e as políticas públicas, melhor seria promover a consciência de cidadania, para que as pessoas possam perceber a importância e o valor dos bens públicos na vida de cada um e passem a lutar para construir um sistema tributário que seja realmente justo, ou seja, que onere mais os mais ricos e menos os mais pobres.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko