O Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre (CMS/POA) denunciou, em debate na Câmara de Vereadores realizado na quinta-feira (25) que pautou a luta antimanicomial, práticas higienistas do município contra a população em situação de rua. Membros do conselho usaram o plenário do legislativo porto-alegrense para alertar a ocorrência de situações de violação de direitos humanos e internações involuntárias.
O CSM/POA ressalta que o anúncio do prefeito Sebastião Melo (MDB) de que “não vai admitir pessoas morando em barracas”, sem apresentar nenhum plano efetivo para a questão e com uma enorme carência de serviços públicos que deem conta do assunto, disparou ainda mais o alerta para o tema.
“Toda a ação de saúde mental e a Política de Saúde Mental devem estar guiadas pela Lei Federal 10.216 de 2001, que estabelece que as internações são o último recurso dentro das ofertas de cuidado e da rede”, disse a vice-coordenadora do CMS/POA, psicóloga Ana Paula de Lima.
:: Conferência Estadual de Direitos Humanos enfatiza a importância de políticas públicas ::
A Conselheira também destacou a inexistência de serviços substitutivos, como Núcleo de Apoio à Saúde da Família, Unidades de Acolhimento e Centros de Convivência e Cultura, ofertados pela Prefeitura de Porto Alegre, que são serviços de base territorial e permitem o cuidado da pessoa com sofrimento psíquico em rede e sem retirá-la da sociedade. “A maioria da população nem sabe o que significam estes serviços porque não existem na nossa cidade”, alertou.
Respeito a conferências e acordos
A vice-coordenadora do colegiado também fez referência à necessidade do cumprimento, pelo gestor, das deliberações da 4ª Conferência Municipal de Saúde Mental, ocorrida em março de 2022, e das conferências em curso que encerram com as etapas nacionais, nas quais o tema da saúde mental foi sempre um dos prioritários para a população.
Ainda, leu a moção apresentada pela delegação de Porto Alegre e aprovada na 9ª Conferência Estadual de Saúde do RS, que repudia as ações de higienização sobre a população em situação de rua impostas pelo governo Melo, que ferem os direitos humanos, os princípios do SUS e as diretrizes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A moção também repudiou o uso da Rede de Atenção à Saúde, como o SAMU, para impor internações involuntárias dessa população, desviando a Rede da sua finalidade, que é o cuidado das pessoas, e desrespeitando a Lei 10.216/2001, que orienta o modelo assistencial de saúde mental no Brasil.
O defensor público da União Geórgio Endrigo Carneiro da Rosa, que trabalha desde 2014 com a população em situação de rua, foi convidado para o debate pelo CMS. Ele falou sobre o descumprimento do resultado de Ação Civil Pública de 2019 em que ficou acordada a necessidade de ajustes nas abordagens, que devem ser humanizadas, respeitosas e de forma multiportas, com a população em situação de rua sendo atendida nos espaços que frequenta e com oferta de alternativas, como o auxílio-moradia. Outro ponto importante é o registro de todas as abordagens em Sistema Eletrônico de Informações (SEI) e disponibilização para todos os órgãos de controle externo. Além da criação de um aplicativo para que a sociedade civil possa apoiar as pessoas que precisam.
“Este acordo foi firmado em julho de 2022, estamos em maio de 2023 e boa parte destas questões ainda não foram retiradas do papel”, destacou Geórgio. Especificamente em relação à saúde, o defensor público disse que é fundamental a implantação de unidades de acolhimento na cidade. “São equipamentos necessários para atender de forma adequada esta população, fariam a retaguarda importante aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)”, defendeu.
“A população de rua tem saída”
“Meu nome é Cícero, sou um ex-morador de rua, morei por 20 anos em situação de rua aqui em Porto Alegre. Hoje eu tenho orgulho de dizer que eu sou educador social do CAPS e que a população de rua tem saída. Mas não foi só um ou dois projetos que me organizaram, foram vários”, falou Cícero Adão Gomes, do coletivo PopRua.
Ele destacou a falta de equipamentos especializados para tratamento de saúde mental. “É muito difícil a pessoa entender que tem que fazer dois tratamentos ou que ela tem que tomar daqui duas horas o medicamento, mas se tem um centro que ela vai ficar e com pessoas especializadas para cuidar dela, ela vai se comprometer”, ressaltou.
Cícero lembrou da época que teve três tuberculoses enquanto morava na rua e não contava com um serviço adequado. “Eu sofri mais de 150 remoções e meu remédio da tuberculose eles tocaram dentro do caminhão de lixo e foi triturado, eu nunca vou esquecer disso”, contou.
Projeto neoliberal
Para a professora de Saúde Coletiva da UFRGS Maria Gabriela Godoy, integrante do projeto Passa e Repassa, quando se fala nas ações higienistas sofridas pela população de rua é determinante pensar o projeto de cidade que está posto. Ela afirma que o governo Melo prioriza o mercado financeiro e expande as desigualdades sociais.
“A cidade vai varrendo as populações consideradas indesejáveis e o projeto neoliberal tem intensificado isso a partir da associação de grandes interesses, como o mercado imobiliário, de construtoras, de bancos e de gestões que se aliam a esta lógica. Vide o que vem acontecendo aqui, no 4º Distrito e na Orla até a Ponta do Arado, em Belém”, denunciou.
A professora também apresentou números de oferta e demanda dos serviços. Segundo ela, 46% da população em situação de rua não tem acesso à alimentação ofertada pela Prefeitura, conforme dados do Sistema de Gestão de Parcerias do Município. Analisando os contratos em relação às vagas de espaços protetivos para permanência noturna ou 24h, a especialista apontou que 40% da população de rua não tem acesso a elas.
Maria Gabriela destacou a inconsistência dos dados sobre o número de pessoas em situação de rua considerados pela Prefeitura de Porto Alegre e alertou que sem essa informação não é possível construir uma oferta de serviços adequada. Segundo análise feita, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) trabalha com um registro de 2.518 pessoas. Porém, no último quadrimestre de 2022, o relatório da Secretaria Municipal de Saúde registrava 9.307 cadastros de pessoas em situação de rua atendidas pelas quatro equipes de Consultório na Rua. “Não tenho como afirmar este número, porque os dados da Assistência não batem com os da Saúde”, disse a professora.
Trabalhadores relatam dificuldades
Os trabalhadores do Consultório na Rua Centro relataram a dificuldade que as abordagens da Prefeitura trazem para a equipe, que deveria criar vínculo e confiança enquanto dispositivo de cuidado integrante RAPS. “Ficamos muitas vezes numa situação tensa e delicada frente a este contexto das remoções, uma vez que somos um dispositivo público de cuidado a essas pessoas”, disse Felipe Costa, lembrando que a função do profissional de saúde passa também pela garantia de direitos.
“É uma angústia a forma como nosso paciente vem sendo tratado enquanto rede e enquanto assistência. A gente se depara com diversas situações bem complicadas, como essas internações involuntárias, não podemos simplesmente pegar estas pessoas e colocar num leito de internação. Muitas vezes chega até nós, em forma de pressão, para fazermos estas internações involuntárias, que precisam do SAMU, da Guarda (Municipal) e da Brigada”, manifestou Laysa Bianca Dias de Souza, também do Consultório na Rua.
Quase a totalidade dos participantes do encontro defendeu a necessidade urgente de ações humanizadas concretas de curto a longo prazo. Entre as sugestões estão a implantação de mais dispositivos de saúde integrados com a assistência social e cultura, unidades de acolhimento, que são moradias transitórias, Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), com atendimento de equipes multiprofissionais, centros de convivência e cultura e espaços de geração de trabalho e renda.
* Com informações do CMS/POA
Edição: Marcelo Ferreira