Não haverá desenvolvimento sem que a América do Sul possa agir em bloco, negociando em bloco
A reunião-retiro de chefes de Estado dos países sul-americanos em Brasília, promovida pelo presidente Lula, é um fato em si mesmo. Dispensaria até outro resultado além da própria realização, tal sua importância frente ao contexto econômico e político dos países da região, e após as tentativas de implodir os avanços integracionistas feitas pelos governos de direita do turno.
A partir da ascensão desses governos de extrema direita e ultraconservadores na região, a integração entre os países sul-americanos regrediu. Este congelamento nas políticas de integração não se deu por razões nacionalistas, ao contrário. Tal regressão se deu pelo alinhamento ideológico às políticas estadunidenses e também por interesse econômico direto de alguns setores subordinados da burguesia local. A consequência foi que a interferência dos Estados Unidos e de suas empresas se deu de maneira mais fluída através destes governos de direita, que criaram um ambiente mais confortável para a potência hegemônica americana; diferente das relações entre países e setores dos países sul-americanos que sofreram obstruções e impugnações.
A integração efetivamente aumenta a capacidade de interferências dos países sul-americanos nas agendas das relações internacionais. Já a desintegração, por sua vez, favorece a manutenção das relações internacionais na correlação na qual se encontra historicamente. Durante estes últimos anos, de governos de direita em maioria, a guerra ideológica permitiu criar um contexto político favorável à aceitação das orientações do Departamento de Estado dos EUA. O isolamento do governo venezuelano, a operação Lava Jato e o impeachment ilegítimo no Brasil, os golpes políticos no Paraguai e Bolívia, a desestabilização do Peru e outros episódios, serviram de justificativa para o enfraquecimento das relações prioritárias entre os Estados sul-americanos.
Entretanto, a eleição de governos progressistas amplia a expectativa de novo impulso nas relações cooperativas entre os países da região. Isto porque tais governos, sejam de centro-esquerda ou de esquerda, via de regra, aplicam políticas de maior independência e soberania em relação à hegemonia estadunidense, procurando ampliar, ainda que com diferenças, as relações políticas e econômicas internacionais.
Em um mundo multipolar, de três grandes protagonistas políticos e econômicos -Estados Unidos, União Europeia e China - o mais efetivo caminho para os países sul-americanos passarem a pesar mais nesta balança é aquele de agirem em bloco. Tomados isoladamente, cada país da região terá menor capacidade de interferência permanente.
Obviamente que sabemos das formas clássicas utilizadas pela potência continental para obstruir este processo de integração, como o oferecimento de vantagens singulares para aquele país que se disponha a ser dissidente neste processo. Ao longo da história, em especial no último período, pudemos perceber que estas vantagens são insuficientes para alavancar um processo de desenvolvimento e pleno emprego duradouros, servindo efetivamente somente para a manutenção da situação hegemônica da potência.
A integração, portanto, não pode ser um tema reservado exclusivamente aos governos. Em função desta correlação internacional de forças, não haverá desenvolvimento sem que a América do Sul possa agir em bloco, negociando em bloco, cooperando em bloco, integrando, não somente o comércio, mas também os esforços científicos, sanitários, culturais e jurídicos. De modo a termos uma condição onde a integração se materialize no dia a dia da sociedade. Para que jovens possam estudar nas universidades, empresas possam intercambiar tecnologia, empregos sejam criados localmente e as fronteiras sejam desobstruídas para as cidadãs e os cidadãos.
Nos dias 26 e 27 últimos, na cidade de Montevideu, - com a participação de diversos componentes de experiências anteriores de governos democráticos da região, entre ex-ministros, diplomatas e intelectuais - foi aberto pelos ex-presidentes Pepe Mujica do Uruguai e Ernesto Samper da Colômbia. O grande consenso foi o reconhecimento de que sem integração não haverá desenvolvimento para os países da região e que esta integração precisa ser apropriada diretamente pelos povos das nações para ter solidez e não se tornar refém de eventuais governos de extrema direita. Há espaço, na opinião pública da região, para avançar na integração. A extrema direita, a grande, porém, não única adversária do projeto precisa ser enfrentada também neste tema.
:: Lideranças políticas apresentam propostas para uma nova integração da América do Sul ::
As adversidades internacionais e locais são inúmeras. Há muitos setores da burguesia sul-americana usufruindo ganhos com a atual situação. Mas em uma visão universalista do desenvolvimento, a grande maioria padece da pobreza e regressão de direitos produzida por esta “onda de gafanhotos” que significou o período majoritário de governos de direita.
A solução para as reservas minerais, incluindo petróleo e gás, para uso do mar, para a gestão ambiental - não somente no tema da preservação amazônica, mas também nesta - para a defesa e segurança, para a defesa sanitária, para a produção de alimentos, entre outros temas estratégicos, está no desenvolvimento de políticas comuns. O que deve estender-se para os campos da proteção social, saúde pública e de desenvolvimento de conhecimento e inovação.
Na abertura do encontro dos chefes de Estado, o presidente Lula falou em moeda única da região. O sentido desta proposta é positivamente impactante para a integração. Assim como a efetivação de um plano de infraestrutura regional - lamentavelmente iniciativas interessantes como o IIRSA não saíram do papel até agora - combinado com a criação de fundos regionais dedicados como o Amazônico e um banco regional de desenvolvimento, serão medidas que poderão dar robustez a um processo de integração entre os países da América do Sul.
A declaração final do encontro dos chefes de Estado reafirma valores decisivos para o processo de integração e para a cultura cívica da região, tais como a defesa da paz, da soberania das nações e da democracia. Reafirmam a necessidade de “elaboração de um mapa do caminho para a integração da América do Sul” e acordam em realizar nova reunião.
A integração ainda é uma estratégia a ser construída. As diferentes políticas externas e injunções domésticas dos países da região não tornam a construção de um bloco regional algo simples. Há diferentes políticas sendo desenvolvidas no que diz respeito às relações comerciais e as diferenças econômicas são óbvias e eloquentes e, portanto, não se trata apenas de proferir uma declaração de vontade, mas de construir acordos que garantam às economias menos industrializadas compensações e compartilhamento de benefícios. As experiências da própria Unasul, do Mercosul, do Pacto Andino, e outras iniciativas devem ser bem compreendidas para se constituir uma base que atraia a totalidade dos 12 países da região.
Não se trata de ter ilusão sobre o alcance dos efeitos da integração. Não estamos falando de um plano de alteração radical da divisão internacional do trabalho ou de implosão do círculo imperialista nas relações econômicas mundiais. Tampouco estamos discutindo a alteração total da condição periférica. Para isso precisaríamos falar de revolucionar as relações políticas. Trata-se de entender que a possiblidade de alterar parcialmente esta relação internacional, que empobrece os povos da periferia capitalista, é fundamental para modificar parcialmente a correlação internacional de poder. Isso precisa ser feito até o ponto que permita aos países sul-americanos uma melhor capacidade política de proteger-se e defender seus interesses imediatos, em um sistema mundial de potências militares e econômicas que não abrirão espaços por generosidade ou moralidade.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko