Rio Grande do Sul

Coluna

O x da questão

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"Eu sou sapatão. E sapato é em si, é amorfo. Não é cis nem é trans, sapatão é bagunça" - Arquivo pessoal
Eu quero acabar com o patriarcado e com todo tipo de quadradinhos

O dicionário diz que imanente é o oposto de passageiro.

Quando nasci, alguém disse que eu era menina, então, minha mãe e meu pai, que já tinham dois nomes pensados:  Mariana e Eduardo Andrés, optaram pelo primeiro. De presente, eu ganhei dois brincos de ouro porque as pessoas deviam saber. Saber o quê? Que tinha uma bucetinha? Qual a importância, vocês já pararam para pensar? Pois então, aí que começa a nossa construção sociossexual. Eu receberia bonecas, me negariam a possibilidade de brincar de carrinhos e olhariam num silêncio ensurdecedor o meu gosto por jogar bola. Corria a década de 1970.

Isso é o gênero. Isso tudo é uma construção social a partir da anatomia.

Foi na adolescência que tirei meus brincos, mas só para trocá-los. Durante muitos anos, ainda brincaria de mostrar que eu era mulher. Tinha um lenço no banheiro cheio de penduricalhos. Eu não saía para a rua sem eles.

Até que um dia eu disse BASTA e nunca mais os usei. Comecei a me sentir disfarçada, eles já não faziam parte de mim. Escrevo e penso, engraçado utilizar um “eles!” para representar o femininO. Interessante.

Até hoje me pergunto o que é o gênero. Para que serve? Por isso gosto de escrever com X. Mas muita gente me diz que as pessoas cegas, ou de baixa capacidade visual, têm dificuldades de entender quando a voz, que lê, pula no X. Dificuldades? Pois então, eu também tenho. O X é o x da questão. Eu não pretendo acalmar ninguém falando com E. Entendo e respeito quando as pessoas se identificam com o chamado gênero neutro, eu mesma em algumas ocasiões o uso, mas não é regra para mim. Não quero uma resposta pronta que acalme o CIStema, nem um novo genérico que nos inclua junto aos machos opressores. Eu quero o debate permanente. Eu quero acabar com o patriarcado e com todo tipo de quadradinhos.

Como me sinto fora de toda gaveta, às vezes me pergunto se serei não binárix. Não binária sou, pois não sou nem femininx nem masculinx. Conversando com uma amiga, próxima da minha idade – em alguns dias completarei meus 55 anos −, ela entendia a não binariedade como uma questão geracional. mariam, disse ela, é o que nós chamamos, há muitos anos, de androginia. Perto de uma década atrás, ou mais, quando larguei os brincos, de certa forma me assumi andrógina. Nessa época tirei o A final do meu nome e decidi que não queria uma letra como destino de chegada. Eu queria transitar a liberdade, aproveitar o trajeto, desfrutar da passagem e do vento.

Anos mais tarde, trocaria mais uma letra, o N por M, por questões marítimas. Na língua hebraica IAM significa mar, ficando assim, um mar absoluto: mar-iam. Quantos movimentos?

Dias atrás inscrevi meu livro mais recente em um concurso. Está assinado pelo meu nome, mariam, não pelo que o documento nomeia. Eu me cadastrei com o meu nome, mas qual é o “meu nome” sendo que eu me chamo de uma forma e o documento me chama de outra? Fiquei na dúvida de se fossem me aceitar e enviei um e-mail perguntando. Primeiro fui muito mal compreendida, alguém do outro lado, me dava a solução: usa ele como pseudônimo. OI???

Passaram uns dias e enviei outra mensagem voltando a perguntar e dizendo que o livro estava assinado com o nome de mariam, todavia, meu documento ainda me chama pelo nome que minha mãe escolheu. E aí eu disse, mas mariam é meu nome não binário.

Por um lado, obviamente fiquei muito feliz quando chegou a resposta de que estava tudo certo. Pelo outro fiquei ... em estado de reflexão.

Tenho ume amigue não binárie que se autodefine trans, para não se definir pela negativa. Chega de não ser. O que somos?

Eu curto muito a ideia do trânsito, do movimento, da passagem, porém, não me identifico com o termo trans.

Se algo me define a mim é o lesbianismo, assim, com ismo, porque o considero um movimento social e político, como o anarquismo, junto ao feminismo. E gosto muito do termo sapatão.

Quando me perguntam se sou cis ou trans, faz tempo que digo que Cis não sou, em consequência seria eu uma pessoa trans? Vamos cair em outro binarismo? Escapo de um para ser trancada em outro?

Eu sou sapatão. E sapato é em si, é amorfo. Não é cis nem é trans, sapatão é bagunça. Algumas e algumes sapatões, não nos consideramos mulheres, tampouco homens. Somos sapatão.

Mas tudo isso eu não podia explicar ao pessoal do concurso.

mariam pessah : ARTivista feminista, escritora e poeta, autora de Em breve tudo se desacomodará, 2022; organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre desde 2017 e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta.  

* Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko