Rio Grande do Sul

VITÓRIA QUILOMBOLA

Quilombo Lemos: Tribunal de Justiça do RS anula reintegração de posse do asilo Padre Cacique

Segundo Defensoria Pública por se tratar de um território quilombola, a posse da área é competência da Justiça Federal

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"É uma vitória contra todo o sistema imobiliário de Porto Alegre, contra a higienização étnica que está sendo feita na Capital", destaca o representante do Quilombo Sandro Lemos - Foto: Alass Derivas | @derivajornalismo

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul anulou nesta sexta-feira (26) a reintegração de posse que o Asilo Padre Cacique pediu contra o Quilombo Lemos, em novembro de 2018. A decisão aconteceu em voto de desempate da desembargadora Lizete Sebben, uma das vice-presidentas do Tribunal, que votou a favor da Ação Rescisória da Defensoria Pública, que representava o Quilombo Lemos no processo. 

A ação ajuizada pela Defensoria tem como argumento que a decisão de reintegração de posse era irregular, visto que corria na Justiça comum. Por se tratar de um território quilombola, a posse da área é competência da Justiça Federal. O argumento do Asilo Padre Cacique era que o pedido de reconhecimento quilombola na Fundação Palmares havia sido feito após o pedido de reintegração de posse. 

A ação rescisória foi ajuizada por Elisângela Lemos Sanches, Maurício Lemos Sanches e Raquel de Lemos Sanches, por intermédio da Defensoria Pública, com o objetivo de anular o acórdão que manteve a sentença de 1º grau determinando a reintegração de posse da área para o Asilo Padre Cacique.

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Os autores da ação afirmam que a comunidade da Família Lemos, que reside no local, protocolou processo de certificação junto à Fundação Cultural Palmares, objetivando o reconhecimento como comunidade quilombola. Referem que a Defensoria Pública da União propôs Incidente Positivo de Competência na Justiça Federal, alegando absoluta incompetência da Justiça do Estado por motivo de se tratar de área remanescente de quilombolas. Também destacaram o Relatório Antropológico produzido pelo Ministério Público Federal.

Segundo o advogado da Frente Quilombola, Onir Araujo, a decisão do TJ foi um golpe na supremacia branca de Porto Alegre, cidade mais segregada deste país. “Os indígenas e quilombolas são a vanguarda da luta humanitária nesta cidade e no mundo”, defende Onir. 

"Essa vitória foi expressiva para o Quilombo porque o processo já está no MPF (Ministério Público Federal) com uma ação contra o Incra dizendo que o Incra deve fazer o estudo antropológico do Quilombo. É uma vitória contra todo o sistema imobiliário de Porto Alegre, contra a higienização étnica que está sendo feita na Capital", destaca o representante do Quilombo Sandro Lemos.

Conforme destaca Sandro, também é uma vitória contra o marco temporal visto que a sustentação de um dos desembargadores dizia que o Quilombo tinha nascido em 2018 com a certificação de Palmares. “A certificação da Palmares é um mero registro, ela não decide quanto tempo tem a comunidade. A comunidade está aqui desde a década de 1960. A gente derruba a tese do marco temporal que também vai estar sendo votada em regime de urgência nas próximas semanas. E é um amparo para as outras populações negras, para as retomadas indígenas e territórios quilombolas. É uma vitória expressiva do Quilombo Lemos, do povo negro, dos quilombos urbanos contra a branquitude, contra o marco temporal e contra a reurbanização de Porto Alegre”, ressalta Sandro

Localizado entre os terrenos do Asilo Padre Cacique e da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase), o Quilombo da Família Lemos é a sétima comunidade autorreconhecida como quilombola em Porto Alegre, tendo sido reconhecida pela Fundação Palmares como tal. Com 60 anos de existência, desde 2009 o Quilombo encontra-se ameaçado por ações de reintegração de posse. 

No dia 31 de março deste ano, na sessão realizada no 10º Grupo Cível do TJRS, houve empate entre os desembargadores. Na ocasião quatro desembargadores, incluído o relator, votaram a favor das famílias do Quilombo Lemos, enquanto outros quatro, incluído o presidente da sessão, votaram atendendo ao pedido da associação mantenedora do asilo.

Em 2020, a desembargadora Vânia Hack de Almeida, da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), havia suspendido a reintegração. 

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No especial dos Quilombos Urbanos, produzido pelo Brasil de Fato RS, Sandro resgatou esse processo. “Eles nunca questionaram a estada da minha família, só após o falecimento dos meus pais que eles entraram com um pedido de reintegração de posse, dizendo que é deles. Esperaram 50 anos! Isso é um fato que chama atenção. Quando meus pais vieram pra cá, se realmente fosse deles [do Asilo Padre Cacique], eles diriam: ‘Ó, seu Jorge, aqui é do Asilo e não dá pra vocês ficarem’. Seria o mais prudente, é o que todo mundo faria e faz até hoje se o seu terreno é invadido”, indaga. Embora certificada pela Fundação Cultural Palmares como remanescente de quilombo, a família vivenciou em 2018 um episódio ilegal e violento envolvendo a disputa pela área. 


Segundo o advogado da Frente Quilombola, Onir Araujo, a decisão do TJ foi um golpe na supremacia branca de Porto Alegre, cidade mais segregada deste país | Foto: Alass Derivas | @derivajornalismo

Em meio ao processo de reintegração de posse, a Família Lemos aguarda o prosseguimento da demarcação do território. Após a emissão da certidão de autorreconhecimento, Sandro se reuniu com representantes do Ministério Público Federal para cobrar o início da identificação. “Eles disseram que o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) tem que fazer o laudo antropológico. Desde então, a gente está tentando fazer com que isso se concretize e que o Incra cumpra a determinação judicial do MP”, explicou.


Edição: Katia Marko