Rio Grande do Sul

Coluna

O mito dos relacionamentos leves

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Vivemos num mundo que normalizou existir de forma hiper acelerada. Os intervalos, sejam nas relações ou no trabalho, tornaram-se contraproducentes" - Arte: Reprodução da obra A Siesta, de Van Gogh
A profundidade exige intimidade, a qual demanda tempo, dedicação e trabalho

Sexta à noite, abro um vinho e começo a assistir vídeos aleatórios no celular. Por uma infelicidade do algoritmo, aparecerem dicas de pessoas autodenominadas "coach de relacionamento". É um momento tragicômico!

Deslizando o dedo sobre a tela, me deparo, em poucos minutos, com homens dizendo o que mulheres devem fazer para encontrar e manter o "príncipe encantado". Há falas de que "homens constroem" e "mulheres se movem", e é por isso que, num processo de separação, o homem fica sem nada, pois tudo o que ele construiu, a mulher leva embora (!). Também vi muitas pessoas dando dicas de como ter um relacionamento leve. Os tópicos giram em torno da ideia utópica de que as relações devem ser permeadas por descontração, facilidade e leveza, evitando o compartilhamento de problemas.

Evitando o compartilhamento de problemas. Sim, você leu certo. O curioso é que esse mito do "relacionamento leve" tem se apresentado constantemente na sociedade do "pense positivo", do "seja a sua melhor versão todos os dias", "viva o processo", "acredite em você mesmo e assim poderá alcançar o que quiser". Seria a busca por um "relacionamento leve" mais um sintoma social? Os descritores de "relacionamento leve" beiram a superficialidade. É possível construir relações sem diálogo? Sem tocar em assuntos mais sensíveis? Sem dividir fragilidades?

Vivemos num mundo que normalizou existir de forma hiper acelerada. Os intervalos, sejam nas relações ou no trabalho, tornaram-se contraproducentes. O tempo corre, o dia só tem 24 horas e a pergunta que muitas vezes atrapalha o sono vem: "o que eu produzi hoje?" Nos é vendida a ideia de que devemos ser máquinas, perfeitas, performáticas, impecáveis, existindo no limite máximo da produção. Tentam de todas as formas nos arrancar a humanidade.

Nos incumbiram uma pressa de concluir. Não temos mais autorização para perder tempo olhando, pensando, compreendendo. A resposta deve ser imediata. E quando ela não vem? Como suportar? As mensagens agora devem ser instantâneas. Todos conectados, todo o tempo, o tempo inteiro. E com o pé no acelerador, o tempo de construção se tornou um impasse. Espera-se por algo pronto, uma relação do tipo lego, é só pegar e encaixar.

Reclamamos das conexões frágeis que temos vivenciado. A sensação de ser só mais um, de ser descartável. É o aprisionamento na eterna busca por ideais, onde qualquer pequena diferença remete à desconexão. Vivemos a fantasia de que o próximo sempre será melhor. Mas então, o que ainda sustenta o laço entre as pessoas?

Arrisco dizer que seria precisamente a humanidade. Aquela mesma que a sociedade tenta a todo custo nos arrancar. A necessidade da interdependência, da essencialidade do encontro com o outro para sobreviver. Os vínculos mais profundos se estabelecem a partir do que nos falta. De nos darmos conta de que sozinhos não nos bastamos.

A intimidade se constrói por meio de trocas reais, repletas de alegria, tristeza, histórias de conquistas e derrotas, ambivalências. A profundidade exige intimidade, a qual demanda tempo, dedicação e trabalho. É um grande esforço construir e manter vínculos. O mito do "relacionamento leve" me parece ser apenas mais um ideal social que empurra as pessoas para o abismo do individualismo e da solidão. Como resistir a mais esse imperativo social?

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko