Obrigada Rita, por ter me ensinado tanto a gostar de escutar ovelhas negras e filhas perdidas
Adolescente e jovem dos anos 70/80, eu me deleitava com “Ando meio desligado”, dos Mutantes. Achava o grupo incrível, mas principalmente a voz vibrante da vocalista. No colégio e em casa, diziam que eu era “meio desligada”, logo, me senti contemplada pela canção. E claro, a adolescência é pura mutação, então “Os Mutantes” eram meus gurus. Quando Rita saiu do grupo, eu simplesmente desinvesti minha devoção a ele, só queria saber o que ela faria.
Para minha alegria, não tardou muito a chegar até nós, que amávamos sua arte, sua produção com o grupo Tutti Fruti, “Ovelha Negra” e “Esse tal de Roque Enrow”. Eu tinha então 18 anos e não me escapou em nada o que essas letras traziam de radicalidade. Parecia-me uma ousada colocação em cheque de todas as formas de vínculo afetivo. Sim, em “Ovelha Negra”, tinha sua expulsão dos Mutantes, que pediram para ela “sumir”, mas tinha também o sentimento de inadequação que todos nós carregamos, principalmente em nossos laços de filiação. Foi alentador, poder ouvir “...não adianta chamar, quando alguém está perdido, procurando se encontrar”. O ideal que fazem de nós e ao qual jamais conseguimos responder, só mesmo a Rita para, em poucas frases poéticas, mostrá-lo como algo de estapafúrdio, colocando em relevo a maravilhosa excentricidade que faz de cada um de nós criaturas únicas.
Transformar o que de nós sempre apareceu no discurso dos nossos outros como um déficit, em um tesouro que carregamos em nossas subjetividades, é tarefa para artista de primeira grandeza, e este era o caso de Rita. Ela não precisava ter tido um pai que lhe dissesse que ela era a ovelha negra da família (parece que ele ficou surpreso com a canção, não entendeu), ela sabia o que era uma filiação, um vínculo, e principalmente, que o trabalho e o amor são movidos pela mesma energia em cada um de nós. Também não lhe escapava que “o melhor de cada casa” (expressão do poeta espanhol Antonio Machado em Las malas companias) podiam ser as ovelhas negras, as desviantes.
A primeira vez que ouvi “Esse tal de Roque Enrow” fiquei siderada, impressionada com o realismo da letra. A mãe perplexa e angustiada com a perda do controle sobre sua menina, e que busca a escuta do doutor para suportar essa mutação, é a mãe de todas as mulheres (e homens também, claro, mães não deixam por menos). Já de saída vem a queixa “Ela nem vem mais pra casa, doutor, ela odeia os meus vestidos”, que é grandiosa por sua carga de verdade. Lembro de ter dito à colega de aula que estava comigo ouvindo a Rita: “Acho que esse tal de Roquenrow é a nossa saída das saias da mãe, é nosso ‘basta!’, é a gente indo garimpar o próprio caminho”. Não esqueci, pois minha colega escreveu, para que fosse uma espécie de compromisso nosso. Eu tinha então 18 anos e era apaixonada por literatura, gostava de Freud, mas não pensava em um dia me tornar psicanalista. Só que, na verdade, eu já havia tido com Rita as minhas primeiras lições.
Também foi magistral, o que ela nos entregou, no início dos anos 80, com “Cor de rosa choque”, o primeiro texto que me mostrava o feminino como uma invenção poética e ética, de uma maneira bem diferente dos discursos feministas que eu conhecia até então.
Eu poderia discorrer aqui durante muitas páginas sobre o que Rita nos deu, com sua travessia por este mundo, no qual ela fez tanta diferença. Dada a brevidade do espaço, me contentarei em contar-lhes ainda que anos depois, durante minha formação de psicanalista, me deparei com a noção do “tornar-se mulher”. Sim, Freud disse isso em 1933, bem antes de Simone de Beauvoir (1949): “ninguém nasce mulher, torna-se”.
Ensinaram-me que isso passava pela necessária saída do território feminino da mãe para ir em busca de seu próprio território, inventar-se. Achei isso incrível, mas não me surpreendi, minha mestra Rita já havia me transmitido muito tempo antes, com Esse tal de Roquenrow. Também quanto à singularidade constitutiva do nosso psiquismo, confesso que até me entediava ficar ouvindo aquilo tudo, pois eu era uma “Ovelha negra” de carteirinha há muitos anos.
Enfim, Rita é a prova viva (sim, porque se alguém realizou o sonho de ser imortal, foi ela) do que Freud disse sobre os artistas e escritores serem os verdadeiros mestres dos psicanalistas. Além disso, sua música corrobora o que Lacan também disse, um dia, a respeito dos escritores: “...a prática da letra converge com o uso do inconsciente”.
Obrigada Rita, por ter me ensinado tanto a gostar de escutar ovelhas negras e filhas perdidas. Não há nada que me interesse mais do que um “caso sério”. Valeu!
* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA, e Presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora Bestiario, 2022).
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko