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Sobre a potência dos nossos encontros

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"O tempo todo Ana, bailarina admirável e de múltiplas possibilidades, foi se entregando se lançando aos estímulos e ideias dessa mulher da cena" - Foto: Daniel Lupo
Em AMANA a narrativa é construída com movimento, palavra e depoimento, é corpo pulsante e memorioso

Tenho dedicado boa parte da minha obra ao tema que move este trabalho com Ana Clara. Desde que fui mais uma mulher vítima da violência sistemática a que todas nós somos submetidas diariamente, minuto a minuto, num país que estupra uma mulher a cada dois minutos e mata outras tantas a cada 7 horas.

Meu primeiro solo, “Desmontagem Evocando os Mortos - Poéticas da Experiência”, foi a primeira elaboração que fiz mesclando teatro, depoimento e autobiografia. A necessidade de contar a minha história, que não poderia ter outra voz que não a minha própria, me deu a clareza de que ali estava uma ação cidadã de uma mulher que não queria mais silenciar sobre essas violências, sobre a eliminação sistemática de mulheres, sobre a necessidade de fazer entender que muitos crimes cometidos contra nós, mulheres, dizem respeito ao fato de, justamente, sermos mulheres. Nós tivemos a necessidade de dar nome ao crime. Feminicídio. 

O machismo e misoginia estruturais dão reiteradas autorizações para que nossos corpos sejam agredidos e violados. Como se fossemos uma espécie de bode expiatório constante de uma sociedade doente que nos vê como propriedade pública.

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Conheci Maria Glória Poltronieri Borges enquanto desenvolvia uma pesquisa para a criação de um espetáculo de Teatro em sua cidade. Foi nesse pequeno e intenso período que tive a oportunidade de ter algumas trocas com ela. E, não diferente de muitas das pessoas que conheceram a Magó, fui tocada pela força, alegria e vivacidade desta jovem/velha mulher.

Galeano fala que somos fogueirinhas, e devo confessar que ela me fez ver esse fenômeno. Ela era uma fogueirinha e nos aquecia e afetava a todos ao seu redor.

Estava em Maringá quando tudo aconteceu com a Maria Glória. Confesso aqui que este episódio de violência me tirou uma vez mais do lugar, me fez visitar velhos fantasmas e ter que refazer um árduo caminho de volta pra mim. Uma experiência que não me abandonaria mais. 

A primeira vez que abracei a Ana foi no dia do velório da Maria, sua irmã. Depois desse momento, começamos a conversar pelas redes sociais e passamos a ter trocas mais constantes. Quando finalizei o trabalho audiovisual “Lê, Dores de Gênero”, que propunha subverter uma obra teatral assistida, eu escolhi uma que eu amava, mas que sempre tinha me movido algo estranho, porque invisibiliza, de alguma forma um feminicídio. Como era baseado no pensamento do nosso querido Paulo Freire, eu perguntava na tela se o que autorizava um homem que se sentia traído a tirar a vida de uma mulher para, entre aspas, salvar a sua honra, poderia ser chamado de analfabetismo ético.

Logo depois de enviar o filme, Ana me responde com um convite urgente. Bem, esse convite me trouxe até aqui. E tenho a cada dia mais certeza de que foi um presente que recebi. Eu quero agradecer, agradecer, agradecer.

Entendi durante esses anos de pesquisa que a memória do trauma, quando levada para a cena, nunca deve ser só a memória da dor, do luto. Ela precisa vir carregada de vida, poesia e da beleza que ronda o desenvolvimento afetivo de um ser no mundo. A história misteriosa e encantada dessas duas irmãs teria que aparecer no palco regada pelo que foi, porque foi, de fato, uma experiência de amor incondicional.


"A memória do trauma, quando levada para a cena, nunca deve ser só a memória da dor, do luto. Ela precisa vir carregada de vida, poesia" / Foto: Daniel Lupo

Sou, de modo geral, uma criadora emocionada e de abundante fonte de ideias. Amo estar em processo criativo, me encanta perceber o percurso e a relação dos símbolos e signos em mim sobre o tema sobre o qual me debruço e como isso pode ser colocado em cena. De como tudo isso vai se dando no meu espírito. Tenho a sensação de que tudo fluiu, como a água que levei no pote para nosso primeiro ensaio. Convicções que foram surgindo desde dentro. A certeza de que podia propor os desafios para Ana e que ela acolheria experimentar. 

Nenhuma imposição, amorosidade sempre e assim vieram os potes, a água, o peixe, abandonar o texto e mergulhar na matéria que a compõem, no caso a dança, para encontrar a escritura poética e sua força. Para que a palavra articulada viesse na medida exata. Para que o movimento fosse o primeiro e fundamental texto desta narrativa de dor, amor, luto e luta.

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O tempo todo Ana, bailarina admirável e de múltiplas possibilidades, foi se entregando se lançando aos estímulos e ideias dessa mulher da cena. Não hesitou em embarcar na proposta de dispositivo cênico/cenográfico do aquário de potes. Nem em colorir cada um dos quatro movimentos que compõem o trabalho com os elementos disparadores (água, ar, terra, fogo) e das sugestões de engajamento de diferentes partes do corpo associadas aos quatro elementos.

Disse “sim”, e navegou com sua dança neste ambiente aquoso e transparente que eu lhe propunha. Confiou em mim e na sua escolha. Esse é um reconhecimento que não tem preço.

O processo foi incrível! É preciso dizer, com todas as letras: é necessário coragem para embarcar numa viagem como esta e coragem é o que não falta a nossa Ana.


AMANA foi apresentada na Terreira da Tribo com bate-papo no final / Foto: Daniel Lupo

Nossa relação em sala de trabalho sempre foi franca, aberta e alegre. Mas, sim, choramos juntas muitas vezes, e não podia ser diferente, mas o brilho em nossos olhos sempre esteve presente. Cumplicidade, cuidado, ética e compromisso. E fora da sala? Fora dela também! Nós convivemos na mesma casinha, comemos, bebemos, choramos, acolhemos, celebramos, nos abraçamos, nos reconhecemos.

Com alegria, posso dizer que ganhei uma amiga, uma mana, uma mão pra não soltar mais.


O Projeto FERA é inteiramente dedicado a Maria Glória Poltronieri Borges, a Magó, vítima de feminicídio no Brasil em 2020 / Divulgação

* Tânia Farias assina a Direção, Dispositivo Cênico/Cenário, Figurino, Dramaturgia (junto com Ana Poltronieri) de AMANA que em TUPÍ significa água que cai do céu. A água, este elemento feminino, conduz o caminho deste rito para evocar a história de duas irmãs separadas por uma tragédia. Uma cena onde momento presente e memória se misturam pra contar as lembranças amorosas, a luta e o luto.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko