Rio Grande do Sul

Coluna

Por uma linha de cuidado

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"Para uma linha de cuidado, é preciso subverter a ordem e assumir que o que chamam de amor é trabalho não pago" - Foto: Reprodução/Arte: Ailen Possamai
A escuta salva, a escuta cura. Foi sempre essa a nossa aposta

Este é o sétimo e último texto de uma série de escritos a partir do encontro entre uma escutadora e uma sobrevivente de feminicídio, cujos vínculos se deram a partir do programa de extensão Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade da UFRGS.


Um dia após o Dia Internacional do Trabalhador e da Trabalhadora completam-se dois anos da violência machista que gerou a demanda para que esse encontro, clínico e vital, acontecesse. Nos encontramos poucos meses depois, ambas profissionais de saúde, e sustentamos a radicalidade-síntese de que a clínica é o que o encontro produz, e que esse encontro significa escuta e afetação. Acompanhamo-nos, no percurso árduo de subir o iceberg até o cume e cartografar, psíquica e geograficamente, a rota de fuga e ressignificação de sobreviver a um feminicídio. Demos corpo a essa clínica do ciborgue que a pandemia - e também sobreviver a ela - nos interpelou, e que cá está.

Por algumas vezes, em alguns de nossos muitos encontros virtuais e alguns presenciais, retornou a memória do convite feito ainda no acolhimento: deixar-se cuidar, experimentar a outra borda da escuta, a contenção. As inúmeras reflexões sobre a ética do cuidado, a invisibilidade do trabalho reprodutivo, da violência vicária, da deficiência. A intersecção entre deficiência, violência e gênero, capacitismo e feminismos. A responsabilidade na educação dos filhos, a possibilidade do amor sob outros acordos e percepções, a recusa convicta de habitar-se com a mortalha de vítima, mesmo tendo sido vitimada. Fazer o giro pela escolha de viver uma vida suficientemente boa a que todas as mulheres, suas crias e comunidades, têm direito.

Também não faltaram diálogos sobre a escolha pela escuta, isso que se aprende não no banco da universidade apenas, mas na vida, na beira do leito, no acesso para um exame, na rotina da medicação, na sala de uma delegacia ou de uma escola, na tela de um celular. Se não escutar é uma escolha, de uma certa maneira, a escuta precisa ser afirmada como uma escolha de vida que perpassa nossos fazeres.

Nos perguntávamos se seria possível o retorno ao trabalho de enfermagem, não apenas pela perda de movimento de uma das mãos como sequela da violência, mas pelo cheiro do sangue e os efeitos disso. Preciso dizer da beleza da escuta quando você voltou a trabalhar e relatou a emoção de sentir a temperatura e a pulsão do sangue correndo pelo acesso na primeira vez que coletou, o que isso significava. Você disse “eu me senti viva, e ainda sou o que eu sempre fiz bem e dei o meu melhor”. Preciso dizer da beleza da escuta quando, no dia 2 de fevereiro, você foi até a praia agradecer por quem tinha se tornado, após a tormenta.

Saber que você volta, nessa data, ao trabalho em uma vaga como trabalhadora da saúde e pessoa com deficiência, em uma agência transfusional, é ter a certeza de que há um mundo sensível que se comunica conosco por sinais. Que a vida quer que aquela sensação pulsante se repita, cotidianamente, em cada gesto e percepção. Quem for atendida/o/e pela técnica de enfermagem e futura psicóloga Thaís Hipólito talvez não tenha a dimensão do privilégio que é receber o cuidado de uma profissional dessa amplitude ética.

A escuta salva, a escuta cura. Foi sempre essa a nossa aposta. Transformar todo fio de indignação em urdidura. Fazer laço e dar nó até na desgraça, para que não mais se repita. A escuta é uma prática feminista primordial que requer rupturas. Cada qual sabe das correntes que lhe habitam, o patriarcado é abundante em imagens dessa natureza. Explicar a escolha pelas teias capazes de reter até o orvalho e invocar o espírito da aranha, como naquele poema de Adrienne Rich, que reclama para si os sentimentos de fúria e ternura e o cuidado para as mãos que organizaram toda a existência.

A necessidade de uma linha de cuidado integral para vítimas de violência de gênero implica em reconhecer suas necessidades individuais e coletivas, na interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos já violados e fragilizados nesses casos, e requer investimentos em formações continuadas com ênfase em trauma, testemunho e reparações sociais. Uma vez que o trabalho doméstico e reprodutivo corresponde a uma fração considerável do capital em circulação, trata-se de enxergar quem realiza e corporifica esse trabalho. Os territórios que habitam essas mulheres são múltiplos e capilares, e não apenas os números, como a dimensão do impacto da violência de gênero são ainda subestimados e subnotificados.

Para uma linha de cuidado, é preciso subverter a ordem e assumir que o que chamam de amor é trabalho não pago, e que uma rede transversal pode ou deveria ser acionada quando essas mulheres são vitimadas pela violência machista que expõe a fratura desses vínculos. Para uma clínica feminista, é preciso uma escuta que recolha fragmentos, memórias, cicatrizes e aproxime-os, encaixe, costure observando limites e potências, em que a memória se apresenta como território existencial de pertencimento.  

No zen, existe uma técnica de reparar as peças cerâmicas quebradas, cobrindo cada cicatriz com ouro, chamada Kintsugi. Obrigada Thaís, por permitir esse aprendizado coletivo em que nos lançamos: como sairmos mais vivas de nossos encontros. Kintsugi.

Lara Werner, em diálogo com Thaís Hipólito.

* Lara Werner é sanitarista com formação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e integrante do programa de extensão Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko