É no processo de uma análise que podemos nos confrontar com o desconhecido que nos habita
Crime e Castigo é a obra mais célebre de Fiódor Dostoiévski. Publicado no ano de 1866, o livro nos transporta para as ruas de São Petersburgo e sua sedutora narrativa gira em torno de um assassinato cometido pelo jovem estudante Raskólnikov. O mesmo justifica seu ato a partir da teoria de que grandes homens, mesmo assassinos, foram absolvidos pela história. Então, com uma machadinha resolve atravessar as carnes de uma velha com a intenção de usar seu dinheiro para a realização de boas causas.
Mas aqui quero me deter em outra teoria que é apresentada logo no início do livro, na qual um artigo publicado pelo estudante é citado e debatido por outro personagem. A ideia em questão é que todos os indivíduos se dividiriam entre “ordinários” e “extraordinários”. Os ordinários são aqueles que vivem na obediência, que não se julgam no direito de infringir a lei, enquanto os extraordinários têm claramente em sua consciência o evidente direito de cometer crimes e descumprir a lei de todas as maneiras, só por serem quem são.
Em suma, Raskólnikov conclui que “todos os indivíduos, não só os grandes, mas até aqueles que saem um mínimo dos trilhos, isto é, que têm a capacidade, ainda que mínima, de dizer alguma coisa nova, devem ser, por sua natureza, forçosamente criminosos”. Obviamente que aqui deslocamos o significado de crime. Realocamos no campo da palavra, do dizer.
Claro que esta crônica não busca uma justificativa para a prática criminosa de atos ilícitos, afinal, o óbvio também precisa ser dito. Mas justamente quero apontar que o conservadorismo dos ordinários impede o surgimento da palavra nova, da proposição de alternativas frente às prescrições sociais nas quais somos constantemente submetidos.
A palavra nova pertence ao grupo dos extraordinários, da criação de novas formas de ser e existir, é uma característica de “senhores do futuro”. Já os conservadores, com seu furor pela obediência, buscam conservar o status quo social, os ideais ultrapassados, segundo Raskólnikov.
Aliás, é interessante pensar que a origem da palavra Raskólnikov deriva de raskól, que significa cisão. Eis um bom entrelaçamento com a psicanálise. Freud postulou que a maioria de nós, somos neuróticos. E não neurótico do jargão popular pejorativo, mas neuróticos justamente por sermos cindidos, entre consciente e inconsciente. E teremos que nos haver ao longo de toda a vida com essa dualidade intrínseca e constitutiva.
Somos seres conflitivos, divididos. Nossos impulsos inconscientes muitas vezes são incompatíveis com a realidade exterior. Nosso desejo é regido pelo desconhecido. Como diz Freud, não somos senhores em nossa própria casa. É dessa divisão que surge o mal-estar inerente à toda existência. Como dar conta da dissonância entre inconsciente e consciente? Um pouco ordinários, um pouco extraordinários. É no processo de uma análise que podemos nos confrontar com o desconhecido que nos habita. É do silêncio e da escuta atenta de um analista que poderemos encontrar uma “palavra nova” que aponte para novas direções.
A clínica psicanalítica é um local de subversão. É nela que podemos perceber o que nos oprime, nos condiciona, nos silencia. Somos construídos pelo discurso e é a partir dele que conseguimos mudar de posição no mundo. Passar de assujeitados para sujeitos, escritores da própria história. E que assim possamos cometer o “crime” da criação de algo novo no horizonte da nossa própria existência.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko