Rio Grande do Sul

Coluna

Nem um amor a menos

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"Não há como a educação crítica midiática não ser um campo intrinsecamente feminista, antirracista, interseccional e, desejavelmente, decolonial" - Arquivo pessoal
Já não suportamos essa guerra do patriarcado, colonialismo e capitalismo contra nossas filhas/os/es

Amanhecer no dia 5 de abril com a notícia de que um homem havia invadido uma creche, em Blumenau, e matado 4 crianças a golpes de machadinha, deixando outras 5 feridas - crimes pelos quais foi indiciado ao fim do inquérito policial, concluído ontem (18) - foi reviver o massacre na escola em Realengo, de 7 de abril de 2011. A proximidade das datas chega a me fazer pensar se há um plano, ou um calendário próprio das seitas masculinistas, nas quais tragédias com esta característica se repetem.

Naquele ano em que minha filha iniciava sua vida escolar na rede pública, um rapaz de 23 anos e ex-aluno da escola municipal Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, simulou pedir um documento na secretaria e invadiu uma sala de aula, matando 12 crianças e se suicidando em seguida. A esse ataque se somam mais 15 até 2022, ano de maior ocorrência, e o ano letivo de 2023 inicia sob uma onda de terror por todo o país. Assim como o país submergiu na institucionalização da tortura com AI-5 em 1968, sob o mesmo sintoma: negando-a.

Me custou muito escrever este texto e voltar a este trauma coletivo que nunca é levado a sério pelo Estado brasileiro, assim como a ditadura cívico militar e todas as suas ausências. Talvez, se nossa sociedade tivesse feito a lição de casa do reconhecimento das tragédias que nos atravessam, o direito à memória e todos os seus desdobramentos pudessem incidir na maneira como respondemos, institucional e coletivamente, ao que é seguramente o continuum da falta de acerto de contas com o nosso próprio passado.

Me lembro, acompanhando a cobertura jornalística do massacre que inaugurou essa série histórica, de uma mãe que, ao enterrar a filha, dizia “por que o Estado assume que não tem condições de garantir a segurança da minha filha, e eu não teria trazido ela para a aula, porque eu não trouxe a minha filha para a escola para morrer”. Há 12 anos o Estado não foi capaz de respondê-la. O atentado ao Riocentro agora acontece na creche escolar, com requintes de crueldade.

Naquele ano, eu tirei a minha filha da escola, tamanho pânico que a pergunta daquela mãe me causava. Tentei novamente no ano seguinte, quando ela mesma me pediu para sair. Ao questioná-la e buscando compreender seu sofrimento, com 7 anos ela me respondeu o que até hoje considero ter sido um dos momentos críticos da minha maternidade, pelas definições que ela foi capaz de formular: “não quero ir para a escola porque parece uma guerra: começa cedo demais, demora para terminar e quando você está no meio, parece que não vai terminar nunca. As pessoas estão gritando o tempo todo, eu não consigo suportar”.

Como pessoa autista, eu conseguia entender o efeito daquele ambiente sobre ela. Como ser humano, me perguntei “como é possível que aceitemos enviar nossos filhos para a guerra?”. Atendi seu pedido e decidi que ela só voltaria para a escola quando tivesse condições, físicas e psíquicas, de enfrentar e saber se defender minimamente das violências do ambiente escolar, sistematicamente negadas e expostas na exaustão e desvalorização de docentes, também seres humanos repletos de idiossincrasias. O retorno se deu alguns anos depois, e entre esse período, enfrentamos as condições impostas por essa decisão, em meio a uma maternidade solo. Há quem diga que eu não fiz nada da vida…

O relatório O ultraconservadorismo e extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às instituições de ensino e alternativas para a ação governamental, elaborado por especialistas e apresentado para o governo de transição ao final de 2022, destaca, entre muitos aspectos, que a ideia de uma supremacia masculina branca é ponto estruturante do extremismo de direita, cuja disseminação entre adolescentes e jovens se dá fortemente pela internet.

A agenda para seu enfrentamento envolve, entre alguns apontamentos bastante interessantes, a educação crítica de mídia como estratégia imprescindível e a oferta de grupos terapêuticos e acolhimento no ambiente escolar como ações preventivas. Embora o relatório cite o pânico moral disseminado através de fake news como a distribuição de kit gay nas escolas como ações que visam distorcer o avanço de pautas progressistas essenciais para a equidade de gênero e o efeito da diminuição de componentes curriculares de Ciências Sociais e Humanas Aplicadas, não há a menção da inserção da Educação Sexual Integral como conteúdo transversal no currículo escolar, tal como a educação crítica de mídia, também por implementar-se.

A Educação Sexual Integral - ESI, como é chamada em muitos países latino-americanos onde é garantida por lei, é um conceito guarda-chuva que propõe conteúdos e práticas transdisciplinares voltadas à educação em direitos humanos, com ênfase em direitos sexuais e reprodutivos. Implica em criar ambientes institucionais que não representem um obstáculo ao exercício desses direitos, mas que, ao contrário, sejam promotores e garantidores, sendo a escola o primeiro deles.

Se a cooptação para grupos de extrema direita se dá através da interação midiática com conteúdos que seduzem através da afirmação da superioridade masculina, ideais racistas, misoginia, lgbtfobia e xenofobia, não há como a educação crítica midiática não ser um campo intrinsecamente feminista, antirracista, interseccional e, desejavelmente, decolonial. Acolher e acompanhar as masculinidades tem sido uma demanda que, sim, precisaremos disputar com ferramentas feministas, inclusivas, não-excludentes e antiadultistas. Um salto a ser tomado. Haja fôlego. Os feminismos comunitários de Abya Yala já discutem isso. 

O autor do atentado em Blumenau disse não se arrepender do que fez, e que faria novamente. Em seu histórico, uso de drogas e casos de agressão ao estilo macho alfa, uma combinação que parece se retroalimentar. A comunidade da creche Cantinho Bom Pastor pede ao Estado que se assegure medidas de proteção e atendimento psicológico. Mas essa ferida precisa ser coletiva. Já não podemos suportar essa guerra que o patriarcado, o colonialismo e o capitalismo em seu estágio de tecnológica barbárie empreendem contra nossas filhas, filhes e filhos. Nenhuma pessoa que amamos a menos.

* Lara Werner é sanitarista e integra a equipe do programa de extensão Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko