O feminino contempla a algumas pessoas, mas o feminiSmo deveria de nos contemplar a todas/es nós
Como diria a poeta polaca Wislawa Szymborsca, a frase mais difícil é sempre a primeira. Como continuaria dizendo no discurso proferido em 1996, ao receber o Prêmio Nobel, pronto. Já passou.
Vou tentar começar pelo “início”. Quando a feminista francesa Simone de Beauvoir escreveu O segundo sexo, lá ficou imortalizada a sua frase mais repetida: Não se nasce mulher, torna-se. Anos mais tarde, a também francesa e feminista materialista Monique Wittig viria a conversar com essa afirmação dizendo, bem, se não se nasce mulher, deve de existir uma brecha e nem todas as pessoas nascidas com vagina iremos nos tornar mulheres, trazendo assim a sua grande frase: As lésbicas não são mulheres. Esta afirmação extremadamente política nos representa a muitas e muites de nós que não queremos ser incluídas/es no coletivo mulheres.
Mas o que ela diz? “O lesbianismo é o único conceito que conheço que está mais além das categorias de sexo (mulher e homem), pois o sujeito designado (lesbiano) não é uma mulher, nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente, pois o que faz uma mulher é uma relação específica com um homem, uma relação que chamamos servidão, uma relação à qual as lésbicas escapam quando rejeitam seguir sendo / se tornando heterossexuais. Somos as prófugas de nossa classe.”
Na minha coluna anterior, Nossos lenços verdes vêm de longe, para não dispersar, resolvi a citação com um pé de página, agora, prefiro me estender. Por esta razão, escrevo mulheres/lésbicas, lembrando que não todas as lésbicas têm se tornado mulheres. Vale ressaltar que esta aclaração só pode ser feita desde o feminismo.
Acho que agora podemos continuar e passar a uma segunda ideia. Muitas vezes as mulheres/lésbicas somos associadas ao feminino. Banheiro feminino, escrita feminina, pensamento feminino. Chego a ter um refluxo em cor de rosa. Eu não sou feminina, sou feminiSta, e gosto de escrevê-lo assim, com um S maiúsculo para me diferenciar do feminino que mais o entendo como a uma imposição, uma costela de Adão, do que a nossa autonomia.
Sei, temos diferenças mesmo entre nós-outras. Por isso, aqui vem a terceira ideia da qual quero falar, os feminiSmoS são muitos, somos um plural de ideias que nos encontramos na denúncia e combate ao patriarcado só que, como ao mesmo tempo somos diferentes, e temos registros e vivencias diferentes, vemos de maneiras diferentes.
Pensemos desta forma, na nossa luta, temos um objetivo em comum, a destruição do patriarcado. Contudo, sabemos que nenhuma de nós vai chegar a ver esse sonho em vida, ainda assim nós continuamos.
Então, nosso alvo é acabar com o patriarcado, mas algumas de nós iremos por uma rua, outras, por uma paralela, outras por uma avenida. Não hierarquizamos os percursos. Todos são possíveis, embora cada uma de nós acredite mais em um do que em outros, por isso falamos na pluralidade. Não estamos sós na luta. Na minha coluna anterior, eu falava de feminismoS cheios de curvas, aqui alguns desses exemplos em palavras da ativista Amelinha Teles, “reafirmo que as mulheres são diferentes e desiguais. Deve se respeitar e enaltecer as diferenças que trazem a diversidade e a pluralidade de ações e de ideias. Para dar conta de tantas diferenças e desigualdades, são diversos os feminismos. Temos o feminismo popular, feminismo sindical, feminismo lésbico, feminismo negro, feminismo interseccional, feminismo marxista, feminismo emancipacionista, feminismo jovem, feminismo indígena, feminismo materialista, anarcofeminismo, feminismo da periferia, feminismo decolonial, feminismo campesino e eco-feminismo, entre outros”.
Como estava dizendo, muitas vezes as mulheres/lésbicas somos associadas ao feminino. Eu, por exemplo, não sou feminina, minha escrita não é feminina, minhas roupas, corpa, nada. Porém, toda eu sou feminiSta. Eu pergunto, se pelo fato de ser escritora, vem alguém e fala da minha escrita feminina, não seria isso agressivo?
Entendo que o feminino não nos contempla a todas/es e utilizo aqui a letra e para incluir as pessoas não binárias que são lidas como mulheres. Então, o feminino contempla a algumas pessoas, mas o feminiSmo deveria de nos contemplar a todas/es nós. Lembremos que foi no século passado que as mulheres tiveram o direito ao divórcio. Isso foi graças as feministas raivosas. Também foi no século passado que as mulheres conseguiram o direito ao voto, também foi graças as feministas furiosas. Assim como a possibilidade de ter conta no banco, de ter CPF, de poder usar calças, de estar dentro das universidades e biblioteca e livrarias.
Então, nem todas somos femininas, porém, todas/es deveríamos ser feministas.
* mariam pessah : ARTivista feminista, escritora e poeta, autora de Em breve tudo se desacomodará, 2022; organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre desde 2017 e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko