No dia 26 de março de 2023, comemoraram-se trinta e dois anos da assinatura do Tratado de Assunção de 1991, que deu origem ao Mercosul. Como todo fenômeno político, nesses anos todos, em meio às transformações nos cenários internacional e nacionais dos Estados partes, o bloco regional tem sido expressão de diferentes modelos em disputa. Buscamos apontar aqui, para uma reflexão, alguns aspectos a respeito da referida disputa e dos desafios que hoje se colocam ao Mercosul.
As polêmicas que, pelo menos de forma mais expressiva, marcaram os debates políticos e intelectuais recentes remetem à redução da Tarifa Externa Comum, à flexibilização das negociações comerciais externas e ao avanço do acordo com a União Europeia. Tais temas, ainda que vinculados à conjuntura atual, fazem parte de um debate histórico entre aqueles que querem um Mercosul que promova uma abertura irrestrita como condição para uma melhor integração nas cadeias globais, atraindo capital estrangeiro para elevar a poupança e o investimento privado, e aqueles que apostam em um bloco regional que contribua para o desenvolvimento possível no capitalismo dependente, atraindo investimentos produtivos, fomentando a competitividade das empresas nacionais e protegendo o mercado interno.
Ainda que o Mercosul tenha sido criado em 1991, seus antecedentes remetem a cooperação entre Brasil e Argentina, durante a década de 1980. Tal cooperação caracterizou-se por uma série de acordos de integração em ramos estratégicos, baseados nos princípios de solidariedade e de concessões recíprocas em meio ao cenário externo restritivo, à crise da dívida e às dificuldades internas. Entretanto, também por esses anos, a consolidação da resposta neoliberal frente à crise fez com que nova proposta de integração de 1991, que agora incluía também os vizinhos Paraguai e Uruguai, abandonasse a lógica integracionista anterior, e passasse a funcionar no contexto das novas medidas de ajuste estrutural, contribuindo, fundamentalmente, para os processos nacionais de liberalização comercial e desregulamentação econômica.
Como todo fenômeno político, inerentemente contraditório e perpassado por interesses de classe, o Mercosul (de Mercado Comum do Sul), como seu nome o indica, e tal como expresso no Tratado de Assunção, não se limitou ao objetivo de constituir uma mera zona de livre comércio que integrasse os países periférico-dependentes do Cone Sul aos fluxos comerciais e de investimento globais. Buscava-se, também, gerar verdadeira integração econômica (que facilitasse a livre movimentação de bens e fatores produtivos), e para isso era necessário um acordo de união aduaneira.
Dessa forma, por meio de uma arquitetura institucional intergovenamental mínima e centralizada nos Executivos nacionais, não apenas se trabalhou em um programa de liberalização comercial externa e de desmantelamento das barreiras ao comércio intrarregional que propiciaram significativos ganhos comerciais durante os primeiros dez anos de vida do bloco, mas também se avançou para o estabelecimento de uma Tarifa Externa Comum que protegesse o mercado interno frente à concorrência externa. Por sua vez, a referida Tarifa, ainda que negociada com dificuldade e objeto de inúmeras exceções, não apenas representava um fator fundamental para avançar em direção de um Mercosul mais profundo, mas também deixava ao descoberto o problema das assimetrias entre os países partes, fundamentalmente em termos de infraestrutura básica e de desenvolvimento industrial.
Por fim, também durante a primeira década de existência do Mercosul, foi decidido que as negociações externas com terceiros países deviam ser levadas adiante de forma conjunta, ou seja, que deviam passar pelos marcos institucionais do bloco regional. Com isso apostava-se a ampliar as margens de negociação nos processos de abertura de novos mercados para a exportação, buscando evitar abertura sem reciprocidades. A forte ênfase no plano econômico mudou na segunda década de vida do bloco. Em meio a um novo ciclo de crescimento da economia mundial e à ascensão da economia chinesa, as economias da região se fortaleceram, e o Mercosul, no contexto, principalmente, das novas agendas neodesenvolvimentistas no Brasil e na Argentina, passou a ser pautado por uma perspectiva mais ampla que, para além da integração econômica, incluísse programas sociais, produtivos e políticos.
Fruto dessa mudança de perspectiva foi a criação de instituições como o Instituto Social do Mercosul, o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul e o Parlamento do Mercosul. Destaca-se, também, a criação das Cúpulas Sociais, que garantiram a participação dos movimentos populares e do sindicalismo no processo mercosulino, assim como a decisão de articulação estratégica com outros países sul-americanos, com destaque para a Venezuela e a Bolívia. Há ainda a criação do Estatuto da Cidadania do Mercosul congregando temas como residência, trabalho e previdência, educação e cultura, saúde, placa veicular única, integração fronteiriça, e integração linguística.
Esse processo de mudança do Mercosul cujo legado em muito tem contribuído para o fortalecimento do bloco foi, entretanto, interrompido. O retraimento da economia internacional e o acirramento da concorrência global, decorrentes de fatores como a crise de 2008/2009, a pandemia da covid-19 e a guerra na Ucrânia propiciaram nos países do Cone Sul uma retomada das políticas basilares do neoliberalismo com impactos no Mercosul. Na contramão da relativização do multilateralismo por parte das grandes potências industriais, a partir de 2016 impôs-se uma agenda de retrocesso ao bloco, sob o argumento de que ele representaria uma espécie de “gaiola” frente à abertura “necessária” para a plena inserção dos seus países na economia internacional.
Dentre as diferentes iniciativas da referida agenda, as duas polêmicas que melhor retratam a disputa de modelos que perpassa o Mercosul remetem às propostas de redução da Tarifa Externa Comum e de flexibilização das negociações externas conjuntas, encabeçadas por Brasil e Uruguai, respectivamente. Frente à falta de consenso em torno das referidas demandas, de forma unilateral, o Brasil implementou a redução tarifária pretendida e o Uruguai está negociando o primeiro acordo preferencial extra-Mercosul com a China. Há ainda o acordo assinado em 2019 com a União Europeia, cuja ratificação enfrenta hoje resistências de ambas as partes em função das dificuldades em encontrar um equilíbrio nas concessões mútuas.
O desacoplamento do comércio industrial entre Brasil e Argentina e a substituição do comércio intrarregional pelas exportações chinesas, a falta de uma unidade de troca comum, os desníveis em infraestrutura e a falta de debate em torno das problemáticas ambiental e energética são alguns dos desafios enfrentados pelo Mercosul na atual conjuntura. Mas também são desafios históricos que remetem à clássica disputa entre a abertura irrestrita aos mercados e acordos equilibrados e mais profundos tendentes ao fortalecimento da integração do tecido social e à inserção soberana no cenário global.
* Professor da UFRGS e coordenador do Núcleo de Estudos em Política, Estado e Capitalismo na América Latina (NEPEC).
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira