Rio Grande do Sul

JUSTIÇA FISCAL

Artigo | Tributação acentua a desigualdade de gênero no Brasil

Pesquisa mostra como a estrutura tributária brasileira se relaciona e reforça a desigualdade de gênero e classe

Brasil de Fato | Porto Alegre |
No Brasil, homens ganham em média 22% a mais que as mulheres, segundo dados recentes do Dieese - Banco Central/Divulgação

O lançamento da pesquisa ocorreu nesta quinta-feira (30/3), às 17h no link IJF: bit.ly/3njqP6A

A desigualdade é o principal problema do Brasil. Somos o sétimo país mais desigual do mundo e aproximadamente 50% da riqueza é controlada por 1% da população. Desigualdade que vai além da renda – no acesso à educação, saúde, moradia, transporte, lazer, cultura, etc. – mas também permeada por raça e gênero.

Estudos robustos demonstram que não é mais possível pensar em um projeto de nação, com desenvolvimento inclusivo e sustentável, que não leve em conta questões de raça e gênero.

A regressividade do sistema tributário brasileiro, que desonera os mais ricos e onera os mais pobres, faz com que pessoas pobres paguem, proporcionalmente, muito mais tributos que os mais ricos. Como as mulheres se encontram na posição de maior pobreza e miséria, concluímos que são elas que pagam mais tributos.

Por isso, precisamos aprofundar a discussão sobre como um sistema tributário, que é um instrumento importante na redução da desigualdade, pode apresentar discriminações explícitas ou implícitas no que se refere ao gênero e afetar de forma distinta a homens e mulheres.

Uma perspectiva de gênero no sistema tributário precisa observar elementos que afetam distintamente a homens e mulheres.

Primeiro: as formas de inserção dos homens e mulheres no mercado de trabalho são diferentes. As mulheres estão sobre representadas em atividades informais, com menores remunerações comparativamente aos homens e estão mais concentradas no cuidado de pessoas, em áreas como educação infantil, saúde e trabalho doméstico.

Segundo: as pesquisas comprovam que as mulheres destinam maior número de horas às atividades domésticas não remuneradas em relação aos homens.

Terceiro: existem padrões de consumo diferentes entre os domicílios chefiados por homens e por mulheres.

Estudos apontam que os domicílios chefiados por mulheres despendem maior parte da renda proporcionalmente em bens como saúde, educação e alimentação. Por outro lado, as despesas masculinas estão mais ligadas proporcionalmente a outros bens, como transporte e ativos.

Quarto: homens têm mais acesso a bens e são os maiores proprietários deste tipo de ativo.

Estes elementos se interrelacionam com as desigualdades de renda e classe já existentes e influenciam fortemente na tributação. Mas, o debate para incluir questões de gênero na tributação é bem difícil, especialmente porque em geral se assume que a tributação deve ser neutra, e não enxerga raça e gênero dos contribuintes.

No recorte da questão de gênero, o ponto de partida entre homens e mulheres não é igual. No Brasil, homens ganham em média 22% a mais que as mulheres, segundo dados recentes do Dieese. Declarações recentes da ONU apontam que serão necessários 300 anos para se alcançar a igualdade salarial de gênero.

A pesquisa “Tributação e desigualdade de gênero e classe no Brasil – Uma análise a partir do IRPF 2020 e da POF 2017-2018”, elaborada por Cristina Pereira Vieceli e Róber Iturriet Ávila, se dedica, justamente, a examinar como a estrutura tributária brasileira se relaciona e reforça a desigualdade de gênero e classe. Este estudo, realizado em parceria do Instituto Justiça Fiscal com a Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES), atualiza e aprofunda o primeiro estudo, disponibilizado em 2020.

As análises indicam que nas faixas de renda mais elevadas, mais de 80% dos declarantes são homens; em todas as faixas consideradas, a renda masculina é superior à feminina, principalmente nas rendas mais elevadas, especialmente entre os que recebem mais de 320 salários mínimos. As mulheres pagam proporcionalmente mais imposto de renda que os homens em quase todas as faixas, sendo detectada a maior diferença entre alíquotas efetivas por gênero na faixa superior, acima de 320 salários mínimos (nesta, as mulheres pagam 12,76% de alíquota, uma diferença de 4,06 pontos percentuais maior em relação aos homens); quanto aos bens e direitos declarados, 69,87% são de homens e30,13% das mulheres.

A pesquisa evidenciou que existem vieses de gênero na configuração tributária brasileira do IRPF. As mulheres, embora recebam menor remuneração por faixa de renda, pagam maiores alíquotas de IRPF em quase todas as faixas de renda. E nas faixas superiores de renda, a evidência destes aspectos é maior ainda: entre pessoas que recebem mais de 320 salários-mínimos, os homens recebem 64,8% do total da renda obtida. Nestas faixas, a maioria dos rendimentos é isenta por causa da não cobrança do imposto nos lucros e dividendos distribuídos, fazendo com que, além de receberem maior fatia dos rendimentos, homens sejam beneficiados com isenção e paguem menos imposto. O estudo mostra que, em 2020, do total dos rendimentos isentos, 67,01% eram declarados por homens e 32,99% pelas mulheres.

Outros aspectos de gênero foram apontados no estudo. Em relação às deduções tributárias, os homens também são maioria, com 57,96%s das despesas deduzidas, enquanto as mulheres deduzem 42,04%. Na restituição do imposto de renda, 56,26% do total dos impostos é restituído aos homens e 43,73% às mulheres. No que se refere ao número de declarantes, os homens representam 56,8% dos declarantes e a participação das mulheres não só é inferior como declina a partir de 30 salários mínimos mensais, até chegar a apenas 12% na faixa acima de 320 salários mínimos mensais.

A pesquisa considerou também os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF)de 2017-18 para analisar os efeitos da tributação direta e indireta nas famílias. As famílias chefiadas por mulheres, é preciso ressaltar, passaram de 22,9% em 1995 para 46,35% em 2020, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-IBGE).

Os dados da POF mostram diferenças nos perfis de consumo das famílias chefiadas por mulheres, que gastam mais em alimentação, habitação, vestuário, higiene e cuidados pessoais, assistência à saúde e remédios e dos homens, que gastam mais em transporte, impostos e aumento de ativo, aquisição de imóveis, investimentos. E, considerando os diferentes perfis de consumo, a carga tributária repercute de forma diferente não só nas famílias chefiadas por homens e mulheres, mas também nas famílias mais pobres e mais ricas.

Se tomarmos como referência os 40% mais pobres e os 10% mais ricos, mesmo que os 40% mais pobres gastem menos de sua renda com impostos diretos, a tributação indireta é maior e o total chega a 24,49%. Para os 10% mais ricos, a carga total chega a 20,47%. Ou seja, os 40% mais pobres comprometem mais sua renda com tributos do que os 10% mais ricos. Os segmentos de renda mais baixos são majoritariamente negros.

Se compararmos o peso no orçamento das famílias mais pobres e das mais ricas, vemos que as primeiras comprometem mais seu orçamento em itens como alimentação, habitação, aluguel, energia elétrica, gás doméstico, vestuário, higiene. Por isso, é de fundamental importância reduzir tributos sobre itens básicos e de necessidade como alimentos, energia, higiene e gás de cozinha e aumentar os tributos diretos.

A regressividade do sistema tributário brasileiro, que incide majoritariamente no consumo penaliza proporcionalmente mais as mulheres, vez que existe uma concentração maior de famílias chefiadas por mulheres nas camadas mais pobres e de mais baixa renda da população e são elas o segundo grupo em proporção de impostos totais sobre a renda.

A estrutura tributária do IRPF acentua as desigualdades de gênero, observados os dados extraídos das declarações de renda. A regressividade da carga tributária, marcadamente centrada na tributação indireta, penaliza o conjunto da população e ainda reforça as desigualdades de gênero, porque são as mulheres as que se encontram na parte mais baixa das camadas de renda e pobreza.

Para enfrentar este problema, precisamos de uma reforma progressiva, que tribute altas rendas e elevados patrimônios, que aumente alíquotas do imposto sobre heranças e doações, que institua, finalmente, o imposto sobre grandes fortunas e que tenha perspectiva de gênero e raça.

Está comprovado que o sistema tributário brasileiro reforça as desigualdades que se cruzam, como as desigualdades de classe, gênero e raça. Desconsiderar essas interseccionalidades e tratar o sistema tributário como neutro, é dar as costas para os graves problemas de desigualdade no Brasil.

* Vice-presidenta do Instituto Justiça Fiscal e da coordenação da Campanha Tributar os Super-ricos, auditora fiscal aposentada

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira