O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-RS) deferiu na noite de terça-feira, 28, liminar requerida pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto (Sindiágua/RS) que condiciona a assinatura de contrato da privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) à elaboração de um estudo sobre os impactos socioeconômico trabalhista, previdenciário e social decorrentes da privatização da estatal gaúcha.
Na decisão, o desembargador federal do trabalho Manuel Cid Jardon determinou a suspensão, pelo prazo de 90 dias, da assinatura do contrato entre o governo do estado e o consórcio que arrematou a companhia.
A formalização de um acordo para os cerca de 6 mil servidores da estatal e dos aposentados e pensionistas já havia sido exigida no curso do processo, mas os documentos apresentados foram considerados insuficientes.
No julgamento, Jardon condicionou a venda de ações da Companhia ao estudo relativo aos contratos de trabalho em vigência e ao destino dos contratos de trabalho e direitos adquiridos em caso de liquidação da empresa, inclusive em relação à Fundação Corsan. Ele determinou o retorno do caso à 18ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, que inicialmente havia negado o recurso ao Sindicato.
“Fica vedada provisoriamente, até a solução final da Ação Civil Pública, a realização de qualquer ato que envolva assinatura do contrato de compra e venda das ações detidas pelo Estado do Rio Grande do Sul no capital social da Corsan ou a efetiva transferência de tais ações ao adquirente”, sentenciou.
O presidente do Sindiágua/RS, Arilson Wünch, explica que o estudo servirá para saber para onde vão os contratos de trabalho, qual será o futuro dos servidores aposentados da Corsan.
“É certo que os trabalhadores da ativa serão demitidos quando da privatização, mas queremos saber como será essa transição e como serão tratados os aposentados”, observa. “São pessoas que trabalharam na Corsan de pá, picareta, enxada e carrinho de mão, pois não existia retroescavadeira, comprometeram a sua saúde e hoje estão com 65 anos, 80 anos. A privatização precisa garantir o amparo a essas pessoas com a manutenção do Fundo de Pensão privado que os servidores pagaram a vida toda. Esse planejamento não foi juntado ao processo”.
Para ele, a decisão do TRT4 “garante que os funcionários, de forma inédita na história das privatizações, tenham voz no processo. Para privatizar, terão que ouvir os trabalhadores”.
ENTREVISTA | Arilson Wünch
“Está muito difícil engolir essa privatização”
A estatal foi arrematada em leilão na Bolsa de Valores de São Paulo (B3), no dia 20 de dezembro, pelo Consórcio Aegea, por R$ 4,151 bilhões.
O valor que equivale a 11 meses de faturamento líquido da Corsan, de acordo com o balanço da companhia relativo ao ano de 2022.
Operadora de concessões de saneamento em 171 municípios do país, entre os quais a cidade do Rio de Janeiro que enfrenta crise de abastecimento nas periferias, a Aegea pertence ao grupo Equipav, ao investidor estatal de Cingapura GIC e à Itaúsa.
Diversos recursos contra a privatização tramitam no Tribunal de Justiça (TJRS), que acatou um pedido do consórcio e impôs sigilo de justiça ao processo apesar de se tratar de matéria de interesse público. Em municípios abrangidos pela companhia, como Rio Pardo e Santa Maria, as câmaras de vereadores estão propondo a instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito para investigar a venda da Corsan.
Um recurso do Sindiágua, que evoca o artigo 249 da Constituição estadual para defender a manutenção da estatal pública, foi negado pelo TJRS. A liminar alega que haverá descumprimento da constituição pelo governo estadual com a venda da estatal, já que a Corsan é a única estrutura do estado para a prestação de serviços de abastecimento de água e saneamento, como exige o dispositivo constitucional.
“Nós postulamos que o estado cumpra a Constituição. Não tem nada demais. Ou cria um departamento que execute os serviços ou altera a constituição. Vamos continuar pleiteando que o estado cumpra a constituição e se isso não acontecer que o governador arque com as consequências”, afirma Wünch, que fala sobre a privatização na entrevista a seguir.
Extra Classe – Porque o judiciário não reconhece a Corsan como órgão normativo e executivo para o setor de saneamento?
Arilson Wünch – O TJ diz que o estado tem que ter o um órgão responsável por esses serviços, mas não necessariamente a Corsan. Não está na Constituição que a Corsan é este órgão que tem que fazer o serviço de saneamento. Não está dito que a Corsan não pode ser vendida, uma vez que já está aprovada pela Assembleia Legislativa a venda da estatal e logicamente nós vamos entrar com recurso para que antes que se entregue a Corsan tenha-se esse órgão.
EC – Qual o papel do Fórum Popular em Defesa da Água na defesa da Corsan pública?
Arilson – O Fórum tem um papel importante desde o início do processo de privatização, trazendo argumentos para que a privatização da Corsan não acontecesse. Sempre publicamos através do Fórum documentos e argumentos para que as pessoas saibam do outro lado da história e não somente a versão do governo. Um papel importante na defesa da Corsan exatamente por informar e trazer os números reais da companhia.
EC – Que números?
Arilson – Em 2022, a Corsan teve uma receita bruta de 4,4 bilhões e uma receita líquida de R$ 3,9 bilhões, um lucro líquido de quase R$ 800 milhões e um lucro EBTIDA (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) de R$ 1,113 milhões. A Corsan foi vendida por R$ 4,151 bilhões. A receita líquida da Corsan, em 13 meses paga a Corsan. E a receita bruta, paga em 11 meses. Está muito difícil engolir essa privatização.
EC – O que está em jogo com essa privatização?
Arilson – O que está em jogo na privatização da Corsan é uma coisa bem simples: deter o monopólio desse bem precioso à vida, que é a água. Os conglomerados internacionais querem se adonar desse patrimônio. O mundo inteiro está desprivatizando, voltando para o serviço público e essas empresas gigantes estão sendo expulsas dos outros países e prospectando onde tem água. O Brasil tem um manancial de até 16% da água doce do mundo. E obviamente que as empresas multinacionais estão de olho nesse processo todo e querem nosso subsolo. O Aquífero Guarani, no RS, é perfeitamente acessado. Várias empresas, como a Nestlé, compraram áreas de terras onde tem água. Esse é o grande objetivo: dominar a questão da água no país.
EC – Qual a relação entre o acirramento dessa corrida pela privatização da água e o Marco Regulatório do Saneamento?
Arilson – A Lei 14.026 que estabelece o Marco Regulatório do Saneamento proíbe empresas públicas de continuar trabalhando no setor. O Marco Regulatório, feito em 2020 pelo Bolsonaro, simplesmente é um desastre para as empresas públicas de saneamento e decreta o sepultamento dos serviços públicos de água e saneamento no país ao retirar o contrato de programa e acima de tudo acaba com os financiamentos públicos para empresas públicas. Isso atinge todas as empresas públicas dos estados e autarquias municipais de abastecimento. Não haverá mais saneamento público no país se essa lei não for alterada. Também estamos trabalhando em nível nacional para que a Lei seja alterada, bem como os decretos reeditados, para que o serviço público possa acessar os recursos e continuar fazendo saneamento.
EC – A privatização da Corsan é irreversível?
Arilson – Uma vez assinado o contrato, se torna muito difícil reverter, porque as multas são gigantes e ninguém entra num processo desses sem que tenha uma grande garantia de que não vai perder dinheiro. E o que eles estão querendo é apenas dinheiro.
EC – Por que o estado alega que a Corsan é deficitária?
Arilson – Desde 2003, a Corsan apresenta lucro para o estado. Portanto, está totalmente equivocada essa informação que passam para a sociedade de que a Corsan é deficitária. O que eles dizem é que a Corsan dá prejuízo em esgotamento sanitário, que pelo Marco Regulatório tem que cumprir em tempo recorde determinadas metas. Eu digo o seguinte: nem nisso a Corsan, que está completando 57 anos nesse 28 de março é deficitária. Ela tem ao longo do tempo um serviço de excelência prestado no abastecimento de água para toda a população gaúcha.
EC – Como está o desempenho da estatal em relação às metas do Marco Regulatório?
Arilson – De 2013 para 2014, quando o Plansab é aprovado, começa uma nova realidade para todas as companhias de saneamento do país, públicas ou privadas, que passam a ter uma meta de 99% de cobertura de água e 90% de esgotamento sanitário. O governo alega que a Corsan apresenta apenas 20% de cobertura de esgotamento sanitário, que sem a privatização não chegará aos 90% em 2033, que é muito pouco tempo, que não tem dinheiro e todas essas bobagens que eles estão dizendo e que não param em pé. A Corsan, ao longo desse período do PAC buscou muito dinheiro.
EC – Qual é e como é calculada a capacidade de cobertura atualmente?
Arilson – Temos uma parceria público privada na Região Metropolitana, obras em andamento e concluídas e o programa Solutrat Corsan que é simplesmente um caminhão limpa-fossa que vai de casa em casa de mais de 200 municípios. Tudo isso representa que a Corsan poderia já ter anunciado em torno de 70% de cobertura de esgotamento sanitário, faltando apenas 20% de separador absoluto até 2033. O programa Solutrat é de 2015, foi iniciado na gestão Sartori e um programa-piloto aprovado em Entre-Ijuís, só que quando o governo Leite assume em 2019 ele esconde esse programa exatamente porque representa uma cobertura de esgotamento saneamento de 35%. Só o Solutrat Corsan, mais os 20% que tem hoje, a Corsan estaria anunciando lá em 2020, 55%. Mais a ppp que vai nos entregar em torno de 10% nós estaríamos com 65%. Mais as obras prontas, que representam em torno de 4%, e as que vão ser entregues até 2025, 2026 somam mais 9%. Então nós passaríamos de 70% na questão do esgotamento sanitário. E aí não justificaria a privatização. Esses números estão sendo escondidos pelo governo do estado para justificar a entrega para a Aegea. No dia 16 de dezembro nós já sabíamos quem venceria o leilão do dia 20 e registramos em cartório que a Aegea seria vencedora.
EC – Por quê?
Arilson – Há denúncias junto ao MPRS e ao Tribunal de Contas do Estado de suspeitas de informações privilegiadas ao consórcio Aegea. Essa empresa está dentro da Corsan desde 2012, passou pelo governo Tarso com uma manifestação de interesse para pegar 117 municípios que são os maiores com cobertura da Corsan. Por isso, ela já tinha o diagnóstico. De 2015 até 2018, a Aegea planejou uma ppp com a Corsan, estudando toda a Região Metropolitana e, em 2019, assinou um contrato e se tornou sócia da companhia, detendo inclusive o conhecimento e a operação do setor comercial da Região Metropolitana, que representa um terço da arrecadação da Corsan. Então, ela tem muitas informações que deveriam ser levadas em conta e estão sendo analisadas pelo TCU e pelo TJ. A CPI da privatização da Corsan que o Fórum está articulando viria para elucidar essa entrega fajuta da Corsan por R$ 4,1 bilhões, quando nós temos um estudo de valuation (avaliação) de R$ 8 bilhões. Há muita coisa ainda a ser esclarecida.
Edição: Extra Classe