“A função do teatro de rua está em sua fusão com o cotidiano, em sua interação com a vida e as pessoas. Antes de tudo o teatro vai chegar a um público novo, inclusive a pessoas que, na sua grande maioria, nunca vão ao teatro. O teatro de rua exigiu do Ói Nóis Aqui Traveiz uma pesquisa estética que foi levada às últimas consequências”, assim descrevem os atuadores da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, Paulo Flores e Tânia Farias.
Seja no espaço físico ou na rua, o Oi Nóis Aqui Traveiz há quase meio século faz da arte pública sua missão. “Atuar como uma forma constante de se compreender e repensar a vida, no espaço onde a vida acontece com maior agilidade, diante de um público vivo, é quando o teatro torna-se revolucionário. Este teatro da vida real suprime de forma eficaz o espaço entre a arte e a vida.”
No ano em que completa 45 anos, os atuadores conversaram com o Brasil de Fato RS, resgatando sua história e falando sobre o futuro.
Para encerrar a comemoração, nesta sexta-feira (31) haverá a apresentação da performance cênica musical 'Violeta Parra - Uma Atuadora’, às 20 horas, na Terreira da Tribo (Rua Santos Dumont, 1186), com entrada franca. E no domingo (2), O Amargo Santo da Purificação - uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella, a partir das 17 horas, na Redenção.
Abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS - O que motivou a criação da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz?
Ói Nóis Aqui Traveiz - A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz começou a ser gestada no final de 1977 com encontro de jovens artistas descontentes com o teatro que se fazia em Porto Alegre e no país. Influenciado pelos movimentos de vanguarda e principalmente pelo teatro revolucionário que acontecia em diferentes partes do mundo, o Ói Nóis Aqui Traveiz começou a desenvolver a sua expressão cênica a partir da criação coletiva, do contato direto entre atores e espectadores e da corporalidade na cena. Esse teatro de ruptura e invenção precisava de outro espaço que não fosse as salas convencionais de espetáculos com o seu palco italiano e sua plateia fixa. Após constituir os espaços do ‘Teatro Ói Nóis Aqui Traveiz’ (1978/79) e 'A Casa Para Aventuras Criativas’ (1980/82) a Tribo cria em 1984 a sua Terreira no bairro Cidade Baixa.
A Terreira da Tribo abrigou desde sua origem diversas manifestações culturais, como espetáculos de teatro, shows musicais, ciclos de filmes, seminários e debates, performances e celebrações, além de oportunizar as pessoas em geral o contato com o fazer teatral.
:: Tânia Farias: Uma artista em desconstrução ::
Reconhecida como Ponto de Cultura, a Terreira é um dos principais centros de investigação cênica do país e se constituiu como Escola de Teatro Popular, referência nacional na aprendizagem teatral. As três principais vertentes da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz são: o Teatro de Rua, nascido das manifestações políticas - de linguagem popular e intervenção direta no cotidiano da cidade; o Teatro de Vivência, no sentido de experiência partilhada, em que o espectador torna-se participante da cena; e o trabalho artístico-pedagógico, desenvolvido na sua sede e outros bairros populares junto a comunidade local.
BdFRS - Como está a situação atual?
Ói Nóis Aqui Traveiz - Na metade de 2022 a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz lançou uma das principais ações de artes cênicas do nosso estado. A ação é dividida em dois projetos “Arte Pública - Território e Memória” e “Arte Pública - Criação e Formação”. A ação tem como princípio a noção de Arte Pública, atividades artísticas acessíveis e gratuitas a todas as pessoas independente de classe, etnia, raça, gênero e demais marcadores sociais. Com atividades de intercâmbio, registro, compartilhamento, preservação da memória das artes cênicas no Brasil, oficinas para a formação e capacitação, e criação de um novo espetáculo de teatro de rua do Ói Nóis Aqui Traveiz.
Esta ação no campo da Memória é de valor inestimável, pois além de culminar na criação do primeiro museu de um coletivo teatral do Brasil, abrirá um precioso precedente
O eixo Território está criando uma rede em parceria com outros Territórios Culturais nos municípios de Porto Alegre, Maquiné e Triunfo, promovendo, com isso, troca de saberes e residências artísticas da Tribo nestes Territórios.
O eixo Memória está realizando ações para a musealização do acervo da Tribo de Atuadores, assim como a pesquisa, sistematização e publicação sobre a memória de grupos teatrais com longa trajetória de trabalho continuado no Brasil. O eixo Criação realiza a pesquisa e criação de um novo espetáculo do Ói Nóis Aqui Traveiz e seu compartilhamento por meio de laboratórios de criação e temporada de apresentações. O Formação realiza oficinas de iniciação, formação, capacitação e qualificação teatral, na sede do grupo, a Terreira da Tribo, e em bairros da Região Metropolitana de Porto Alegre, descentralizando o fazer artístico e promovendo novos agentes culturais.
Os Projetos são uma parceria da Associação dos Amigos da Terreira da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz com a Fundação Nacional de Artes do Ministério da Cultura do governo federal. Os recursos para a realização dos Projetos são provenientes de emenda parlamentar da deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL).
BdFRS - Como e quando será o lançamento do Museu da Cena do Ói Nóis Aqui Traveiz?
Ói Nóis Aqui Traveiz - Pretendemos lançar o Museu da Cena até o final deste ano. Estamos reformando um espaço na zona Sul, que a Associação dos Amigos da Terreira da Tribo está ocupando através de edital do governo do estado.
O prédio se encontra em precárias condições, mas estamos investindo muito tempo e energia para colocarmos esta ideia em prática. Esta ação no campo da Memória é de valor inestimável, pois além de culminar na criação do primeiro museu de um coletivo teatral do Brasil, abrirá com isso um precioso precedente, para que outros possam seguir o exemplo e preservar a memória da cena brasileira.
O Teatro é uma arte efêmera, difícil de capturar, mas deixa valorosos rastros. O Ói Nóis Aqui Traveiz acredita que isso ampliará a produção de pensamento sobre todos os elementos que compõe a cena do teatro e sobre sua importância. Dos figurinos à cenografia, da iluminação à sonoplastia. O Ói Nóis Aqui Traveiz acredita que o Projeto vai deixar um grande legado para as gerações futuras de artistas e pesquisadores das artes no Brasil.
BdFRS - Quais são os projetos e expectativas futuras?
Ói Nóis Aqui Traveiz - É um momento de grande expectativas com a vitória do pensamento democrático em nosso país. Sabemos que temos que participar ativamente da reconstrução do Brasil através da nossa arte e do nosso engajamento na luta pela liberdade e justiça social. Arte, Cultura e Educação são forças vitais para vencermos as sombras do fascismo.
A Terreira da Tribo, que sempre ocupou prédios privados, pagando onerosos aluguéis, tem neste momento a possibilidade de construir um espaço cultural público em um terreno público para fazer a sua Arte Pública. Acreditamos que estaremos nos próximos anos compartilhando a nossa experiência com o maior número de pessoas possível, por meio de nossas encenações e a nossa prática pedagógica.
BdFRS - Qual a importância do teatro, especialmente o de rua para a democracia e a cultura?
Ói Nóis Aqui Traveiz - A função do teatro de rua está em sua fusão com o cotidiano, em sua interação com a vida e as pessoas. Antes de tudo o teatro vai chegar a um público novo, inclusive a pessoas que, na sua grande maioria, nunca vão ao teatro. O teatro de rua exigiu do Ói Nóis Aqui Traveiz uma pesquisa estética que foi levada às últimas consequências. Onde surgiram elementos como o uso da máscara, a criação de bonecos de grandes proporções, a utilização da música, do canto e da dança, das pernas-de-pau, e a confecção de figurinos e adereços criativos e coloridos. Por tudo isso é que o teatro de rua da Tribo é contagiante e conquista a empatia dos mais diversos públicos.
Na sociedade de consumo a rua significa a libertação do teatro enquanto mercadoria, já que busca o envolvimento direto entre o público e a criação artística
Através dos cortejos que geralmente abrem os espetáculos, o Ói Nóis Aqui Traveiz vai surpreendendo todo tipo de pessoas das mais variadas idades, que involuntariamente se vêem fazendo parte de uma roda, onde a magia que, em algum momento da história da humanidade deu origem ao teatro, retorna e rompe as regras do cotidiano cinzento e tenso da cidade.
Na sociedade de consumo a rua significa a libertação do teatro enquanto mercadoria, já que busca o envolvimento direto entre o público e a criação artística. Representa uma forma de escapar do sistema capitalista e do aparelho cultural, não apenas trazendo para cena uma estética e uma ética libertária, mas também uma reavaliação completa dos meios de produção dessa cultura hegemônica.
Atuar nas ruas, nas praças públicas e nos parques, atuar para todos os que estão ali, de forma gratuita. Atuar como uma forma constante de se compreender e repensar a vida, no espaço onde a vida acontece com maior agilidade, diante de um público vivo, é quando o teatro torna-se revolucionário. Este teatro da vida real suprime de forma eficaz o espaço entre a arte e a vida. Um teatro a tal ponto coincidente com a vida parece prolongar, se não mesmo ultrapassar, a reivindicação artaudiana de uma cultura não distanciada da existência.
BdFRS - Como está a construção do novo espaço do Terreira?
Ói Nóis Aqui Traveiz - Pretendemos começar a reforma e construção do novo espaço da Terreira (Travessa Carmen, 95 - bairro Floresta) ainda neste semestre. Apesar do TPU (Termo de Permissão de Uso) ter sido assinado com a Prefeitura no início de dezembro, o espaço principal a ser reformado ainda não foi desocupado e entregue para a Tribo. Isso está atrasando a conclusão do projeto arquitetônico que está a cargo dos nossos arquitetos parceiros do Mãos, coletivo de arquitetura e urbanismo. Logo que o espaço for liberado teremos o primeiro projeto de reforma do galpão principal.
:: Após quase 45 anos, Terreira da Tribo vai ter um lugar para chamar de seu ::
Já estamos conversando com possíveis apoiadores, trabalhando pra que tenhamos os recursos necessários para que a gente transforme o que hoje é uma ruína em um espaço vivo, um ponto de Arte Pública, que é o que o Ói Nóis tem feito nesses 45 anos, centro de aprendizagens a cerca do teatro, das artes em geral e da cidadania.
Pra nós é vital que a comunidade esteja junto nessa construção. Por isso pretendemos logo que tenhamos o projeto pronto, iniciar os trabalhos com mutirões. Fazendo um chamamento a comunidade e também criar uma grande rede de apoiadores para que no início do próximo ano a Terreira possa abrir as suas portas em um espaço público, uma demanda do Orçamento Participativo que vem desde o final dos anos 1990 do século passado que vai ser um grande feito desse tempo presente.
BdFRS - Nesta sexta-feira, na celebração do aniversário o show foi escolhido foi Violeta Parra. Por que da escolha?
Ói Nóis Aqui Traveiz - Neste mês de março a Tribo de Atuadores está celebrando com a cidade os seus 45 anos, apresentando com entrada franca a Mostra do seu Repertório com os espetáculos M.E.D.E.I.A, Quase Corpos: Episódio 1 – A Última Gravação, Desmontagem Evocando os mortos – Poéticas da experiência, Manifesto de uma mulher de teatro e o curta metragem Ubu Tropical em diferentes espaços como a Sala Álvaro Moreyra, o Teatro de Arena, e a Carlos Carvalho na CCMC.
Para finalizarmos esta programação escolhemos a performance cênica musical 'Violeta Parra - Uma Atuadora’ para ser apresentada aqui na Terreira da Tribo, no dia 31 de março, data que marca a estreia do primeiro espetáculo da Tribo em 1978, e no dia 2 de abril, no nosso Parque da Redenção, o espetáculo de Teatro de Rua 'O Amargo Santo da Purificação - Uma Visão Alegórica e Barroca da Vida, Paixão e Morte do Revolucionário Carlos Marighella’.
Encerrar a nossa celebração cantando as canções desta ícone da arte popular da nossa América e levar para as ruas a trajetória de um revolucionário que enfrentou a ditadura é reafirmar a nossa luta por Memória, Verdade e Justiça
Para nós a escolha de ‘Violeta Parra - Uma Atuadora’ foi primeiro pra marcar a data em meio a uma programação marcada pelas questões da violência contra as mulheres, contra o machismo e a misoginia e por isso pensamos em homenagear com as canções desta mulher, símbolo da arte comprometida com os oprimidos, toda a América Latina e também o povo chileno na sua incansável luta por melhores condições de vida. E também porque cantar junto com a comunidade é uma bela maneira de comemorar.
Para nós a escolha do dia para lançar a nossa primeira encenação em 1978 era se contrapor a data que os militares golpistas de 1964 tinham escolhido para festejar a sua “revolução redentora”.
Assim encerrar a nossa celebração cantando as canções desta ícone da arte popular da nossa América e levar para as ruas a trajetória de um revolucionário que enfrentou a ditadura é reafirmar a nossa luta por Memória, Verdade e Justiça.
BdFRS - Querem deixar uma mensagem final?
Ói Nóis Aqui Traveiz - Acreditando no Teatro como um modo de vida, o Ói Nóis Aqui Traveiz desde a sua origem dissemina ideias e práticas coletivas, de autonomia e liberdade, compartilhando a experiência de convivência e de laboratório teatral. A trajetória da Tribo tem sido o resultado da soma dos desejos e esforços empreendidos por dezenas de atuadores que passaram pelo grupo e deram o melhor de si na construção de poéticas de ousadia e ruptura.
É fundamental para o Ói Nóis Aqui Traveiz a abertura para novos participantes. As pessoas que buscam a Tribo se identificam com as premissas que movem as atividades do grupo. As ideias anarquistas que são colocadas na prática no dia a dia do grupo, tanto na criação como na sua organização, é que vão apaixonar ou não os novos participantes. Ao mesmo tempo em que estas ideias e práticas são sólidas na atuação do grupo, a constante renovação dos atuadores não permite que nada possa ser cristalizado. Esse movimento contínuo reafirma a prática libertária. Novas pessoas são novas ideias e novos sentimentos, levando a um repensar diário da prática da Tribo.
A organização da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, baseada no coletivo e seu funcionamento autônomo, vai revelar-se no fazer teatral, dando continuidade a uma história de perseverança e luta do teatro independente da América Latina.
Enfrentando todas as dificuldades econômicas e os perigos do pensamento autoritário, o Ói Nóis Aqui Traveiz está onde sempre esteve, combatendo o fascismo, o ódio e a intolerância em defesa da democracia, da liberdade e da justiça social.
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Edição: Katia Marko