A narrativa de que a Ditadura de 1964 derivou da vontade da sociedade é a mãe de todas as fake news
Desconheço qualquer caso no mundo onde alguma ditadura ou regime autoritário tenha expressado que seus objetivos eram os de garantir os privilégios dos poderosos, calar a crítica, auferir lucros ilegais e imorais, produzir a dor, escravizar uma etnia, seviciar e torturar os insurgentes, eliminar os adversários. Em via de regra sua retórica está assentada na salvação nacional ou da moral, na restauração da ordem, na preservação dos valores tradicionais da família, da propriedade, combater o mal.
Com essa retórica, empresários, militares, burocratas, jornalistas, clérigos, agentes estadunidenses, integralistas, fascistas, reacionários e negociantes de vários predicamentos se articularam para “empreender” o golpe de Estado de 31 de março de 1964. Condomínio que René Dreifuss[1] chamou de “partido dos novos interesses”. A retórica de 64 dava conta de que as famílias brasileiras pediam uma intervenção salvacionista para que o comunismo não tomasse conta do Brasil.
O resultado é conhecido! Em menos de 24 horas de golpe já haviam sido assassinados dois jovens e em poucas semanas mais de 50 mil pessoas já haviam sido afetadas e injuriadas pela nova ditadura. O relatório da Comissão Nacional da Verdade conclui que os governos da ditadura executaram assassinatos, tortura, desaparecimentos, perseguições, violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade. Já na década de 1980 a economia entrou em colapso levando milhões ao desemprego, à fome e à violência. Pululam, ainda hoje, denúncias de corrupção, desvios, privilegiamentos e nepotismos em decorrência do exercício ditatorial do poder e do silêncio que ele impõe.
A narrativa de que a Ditadura civil-militar de 1964 derivou da vontade da sociedade, de que não havia corrupção e que houve progresso econômico é a mãe de todas as fake news. Mas não é a derradeira.
Esta mesma narrativa renasce com a emergência e ascensão da extrema direita e do reacionarismo no Brasil de 2013 aos dias atuais. A articulação de parcela do sistema judicial, do mercado financeiro, das grandes empresas de comunicação, da maioria das cúpulas das igrejas conservadoras, de parlamentares, think tanks e militares nostálgicos, anelantes da ditadura militar, é o “partido dos novos interesses” do século XXI, me amparando em Dreifuss.
Das conspirações contra o governo eleito de Dilma ao governo Bolsonaro, toda a narrativa e operação foi, e continua sendo, uma narrativa conspirativa e golpista. Uma elegia mórbida à ditadura, tortura, supremacismo e morte.
Foi em nome disso que, durante os últimos 10 anos, o país conviveu quotidianamente com a desatino golpista. Do aparelhamento das polícias à espionagem. Da manipulação religiosa ao corte de despesas sociais. Das ameaças e impropérios do 7 de setembro ao atentado terrorista no aeroporto de Brasília. Da intentona fascista de 8 de janeiro aos discursos de ódio do armamentismo. Essa fantasia do bom Brasil, o país sem racismo, do povo cordato, religioso, onde cada um sabe o seu lugar, é a bula golpista de 1964 revisitada pelo bolsonarismo.
Trata-se, enfim, de uma derivação da mãe das fake news: de que a extrema direita seria o único sujeito capaz de recolocar o Brasil no caminho da ordem e, vejam o cinismo, do progresso. Uma retórica autoritária em pele de democracia.
Ditadura nunca mais!
[1] DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de Estado. Petrópolis: Editora Vozes, 1981.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko