A crise ambiental revela dados alarmantes sobre o futuro do acesso à água
Quase 70% do corpo humano é composto por água, o que a torna o elemento essencial para a manutenção da vida. Desde os primeiros assentamentos humanos, há pelo menos 4.500 anos, existem registros da construção de canais de irrigação e de abastecimento das cidades. Quando analisamos as construções arquitetônicas dos povos Inca, Maia e Astecas, na América Latina, encontramos sistemas inteligentes de abastecimento de suas “cidades”. Nossa história, nosso corpo, evidenciam uma profunda relação de dependência que temos com a água.
Com a modernidade, e a consolidação do modo de produção capitalista, as relações de produção se transformam e assumem um caráter predatório no uso da água. Setores industriais como o agronegócio e a mineração têm um uso intensivo de água, afetando o equilíbrio do ciclo hídrico. No caso brasileiro, a expansão de monocultivos fruticultores na região do Vale do São Francisco (no Nordeste), as plantações de eucalipto, os minerodutos e a utilização de barragens de rejeitos são atividades de alto consumo hídrico.
A esses fatores se somam o uso completamente desordenado da administração da gestão das águas, por meio da construção de barragens sem estudo de impacto de bacia e da outorga indiscriminada para empresas sem controle. Na mesma esteira, os casos de contaminação dos cursos de água, como o relatado pelos camponeses e pelas camponesas que vivem no assentamento na cidade de Nova Santa Rita (RS), região metropolitana de Porto Alegre, que devido à pulverização aérea de agrotóxicos desde 2020 têm encontrado indícios de contaminação da água potável do local com agroquímicos. Apesar da recente vitória pela não pulverização nas proximidades do assentamento, ainda precisam ser verificados os danos aos cursos d'água. Também acompanhamos a realidade vivida por comunidades que cercam empreendimentos minerários, como no Vale do Rio Doce (MG) e em Oriximiná (PA).
A crise ambiental revela dados alarmantes sobre o futuro do acesso à água. Várias regiões do mundo encontram-se em escassez hídrica, como no Nordeste brasileiro, ou mesmo nas grandes cidades como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Isso, num país que concentra 16% da água potável do mundo. O que só revela o problema na forma como estamos gestando o uso hídrico.
Tal realidade se agrava quando colocamos as lentes de gênero para a desigualdade no acesso à água. Muitas mulheres gastam horas de seu dia em busca de água para a família, percorrendo longas distâncias com uma lata d’água na cabeça. Uma parte muito importante da economia do cuidado, invisibilizada.
É por isso que as lutas pela água e seu controle são certamente uma das mais importantes fronteiras da disputa capital x vida dos nossos tempos. De um lado, as vozes dos movimentos populares e organizações da sociedade civil, que defendem um modelo público de gestão das águas, reconhecendo estas como um “bem comum” essencial à vida humana. De outro, as empresas transnacionais e suas políticas de expansão da mercantilização das águas.
O problema do acesso à água no Brasil
No Brasil, o campo do saneamento básico (água e tratamento de esgoto) vem resistindo às privatizações desde os anos 90. Após o golpe em 2016, os intentos de privatização do setor ganharam força e se concretizaram na Lei nº. 14.026/2020 (novo Marco Legal do Saneamento Básico), que autoriza a privatização dos serviços de saneamento básico. Com o marco, a distribuição e controle do saneamento público, hoje realizado em sua maioria pelas prefeituras, poderá ser concedido a empresas privadas.
No país, possuímos 57 milhões de ligações de água, em 630 mil km de redes instaladas, 300 mil km de redes de esgotamento, na qual trabalham 220 mil pessoas e, portanto, uma grande fatia de mercado ainda por ser explorada. Com a possibilidade de privatização, todo o fornecimento e manutenção pode passar às mãos privadas, convertendo a água, um bem público essencial, em mercadoria. Como é o caso da Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento), leiloada em 2022 pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul por menos da metade de seu valor. Por esse motivo, a assinatura do contrato de venda segue embargada pelo TJ/RS (Tribunal de Justiça) e pelo TCE/RS (Tribunal de Contas do Estado), resultado da luta de sindicatos e movimentos sociais. Essa mudança implica que as tarifas de abastecimento já não terão como foco a disponibilidade e acesso, e sim, a lucratividade.
São diversas as consequências do novo marco. Quando analisamos, numa perspectiva comparativa com outros países e setores privatizados, como o elétrico, podemos reconhecer que a mudança de controle da gestão pública para a privada poderá implicar: a) no aumento do preço das tarifas, já que sua função primordial é assegurar o lucro e não a prestação do serviço; b) na diminuição da qualidade do serviço; c) pode-se criar zonas sem acesso ao serviço, tendo em vista que não se tornam rentáveis, como áreas rurais e periféricas, cujos custos de disponibilidade são maiores. Outrossim, a lógica privada impõe a disponibilização e manutenção, que são objetivos diferentes do acesso, e do propósito último da universalização.
Não à toa, 265 cidades do mundo remunicipalizaram o serviço de saneamento, dentre elas Paris (França) e Barcelona (Espanha), por reconhecerem o abastecimento de água como um serviço público essencial que perdia suas características de atendimento com a privatização.
Cabe lembrar que por volta de 2 milhões de brasileiros e de brasileiras ainda não não possuem acesso à água potável em suas casas. Se olharmos os números sobre um recorte racial e de classe, vamos encontrar uma maioria de população preta e parda, nas periferias das grandes cidades. Essa disparidade também se expressa pelo desenvolvimento desigual entre as regiões, quando os dados apontam que 60% dos moradores da região Norte, 54% da região Nordeste e 53% da região Centro-Oeste ainda não acessam saneamento básico, em contraste à 21% no Sul e 10% no Sudeste. Todos esses problemas não fazem parte do escopo dos processos de privatização, encontrando-se completamente à margem das novas regras para saneamento, fazendo com que o Estado coloque a sujeira para debaixo do tapete.
Nos últimos anos, as grandes cidades já convivem com a crise hídrica em algumas partes do ano, afetando os bairros de maneira desigual, marcados por uma repartição de classe na distribuição. Até mesmo na pandemia, quando o acesso à água era necessário para as medidas preventivas, não houve avanços na universalização desse direito. Ocupações urbanas não possuem acesso à água encanada, famílias mais pobres não podem armazenar água por não terem recursos para aquisição de caixas d'água. O acesso universal à água, como preconizado na Declaração Universal de Direitos, ainda não é materializado.
A transferência do controle das águas a agentes privados sem qualquer debate público oculta a complexidade que envolve a gestão deste bem público. Evitando que a sociedade possa debater, em profundidade e à luz da ineficiência em outros países, o que tem sido a privatização. E além: o “mercado das águas” envolve muito mais do que o saneamento; conecta-se à privatização dos parques, áreas de conservação e preservação ambiental, responsáveis pelas nascentes. Também, os processos de outorga indiscriminada de água para o agronegócio, mineração e siderurgia, entre outros, têm ocasionado conflitos socioambientais, como a luta pela água em Correntina (BA).
Por um modelo público para o saneamento
“A população do mundo sem água não vive”, nos ensina o Cacique Mbyá Timóteo, da Aldeia do Arado Velho (RS), ao denunciar a falta de acesso à água potável em seu território. Se conseguirmos compreender, em profundidade, a dimensão de dependência que temos com a água, seremos capazes de construir um outro modelo de gestão do uso dela. Como um bem comum essencial à vida, assumirmos, tal qual os povos originários do Brasil, um lugar de “guardiães de nossas águas”.
Para tanto, precisamos construir um projeto político e cosmológico, que coloque a vida humana no centro e retome o controle público dos nossos bens comuns privatizados. Não podemos seguir permitindo o avanço da implementação da Lei nº. 14.026/2020 e, com isso, novas privatizações. Devemos manter o que é comum sob o controle do poder público, fiscalizado e gerido em processos amplamente democráticos e populares.
Iniciativas importantes estão em curso, como a adoção de marcos para rios livres de empreendimentos ou como a Frente Parlamentar em defesa da revitalização das bacias e da conservação dos recursos hídricos, recém criada na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Podemos citar, ainda, as PECs 02/16 e 06/21 (proposta de emenda à Constituição), que buscam tornar o saneamento e o acesso à água potável direitos constitucionais. E também o PL 1922/22 (projeto de lei), que faz parte da Campanha Sede Zero, uma iniciativa do ONDAS - Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (articulação composta por dezenas de entidades e movimentos sociais, resultantes das construções do FAMA - Fórum Alternativo Mundial da Água, em 2018). O PL se constitui como uma resposta popular ao marco do saneamento privatista de 2020, sancionado pelo presidente na época, Jair Bolsonaro, e busca garantir o acesso à água e esgotamento sanitário às populações vulneráveis e de baixa renda. A proposta política articula o debate de combate à fome e à sede, segundo o grito de ordem das organizações: É Fome Zero e Sede Zero!
Em 2018, o Brasil sediou o FAMA, um espaço coletivo, construído na diversidade de vozes que compõem nossa sociedade, e todas elas, em uníssono, afirmaram “a água não é mercadoria, a água é do povo”. Como um bem comum, a água deve ser preservada e gerida pelos povos para as necessidades da vida, garantindo sua reprodução e perpetuação. Um projeto democrático para as águas inclui as vozes. O dia 22 de março da semana passada nos lembrou da importância da centralidade das águas e da luta por ela na construção de um futuro mais justo e igualitário ao povo.
* Amigos da Terra Brasil (ATBr) é uma organização que atua na construção da luta por Justiça Ambiental. Quinzenalmente às segundas-feiras, publicamos artigos sobre justiça econômica e climática, soberania alimentar, biodiversidade, solidariedade internacionalista e contra as opressões. Leia outros textos.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo e Katia Marko