A herança maldita dos últimos anos do governo Bolsonaro foi o aumento da violência de gênero
Ela estava feliz, com o salário de seu novo emprego havia conseguido alugar uma casa perto da praia e sairia, então, da peça em que vivia sufocada pelas brigas dos casais vizinhos. Conhecia aquelas palavras, o peso daquelas palavras, compostas pelos mesmos afetos das relações que deixou e em que foi deixada. Não lhe habitariam mais, estava aprendendo a viver sem elas: a viver sem a mãe, que lhe pariu aos 17 anos e sempre lhe dizia que ela havia destruído sua vida, com ódio, porque se parecia com seu pai. Aprendendo a viver sozinha, sem namorado ou marido, após separações traumáticas e tão cheias de palavras brutas.
Naquela noite estava feliz, foi a uma festa comemorar esta nova etapa, tomar umas cervejas e, no máximo, uns beijos. Acordou, na manhã seguinte, em frente à casa onde se comemorava na noite anterior, tonta e apenas com flashes de memória daquele homem sobre seu corpo. Tinha hematomas nas pernas, marcas de mordidas nos seios e arranhões na barriga. Sentia dores na vagina, pela calcinha sentiu o cheiro de sêmen e, entre sentimentos de nojo e pânico, voltou para casa, onde se lavou e tomou três comprimidos de calmante com uma pílula do dia seguinte que comprou na farmácia, no meio do caminho.
Me telefonou em meio a uma crise de pânico, apavorada com a possibilidade de uma gravidez. Isso era o que menos eu temia, expliquei que precisava ir até um serviço de saúde e iniciar a profilaxia para infecções sexualmente transmissíveis emergencialmente, dentro de 72 horas após o estupro. Mas ela já não conseguia ir, os remédios começavam a fazer efeito.
Pactuamos que ela iria na manhã seguinte, e que eu estaria do outro lado do telefone, acompanhando-a. Expliquei que ela deveria ser atendida, que medicações e exames seriam realizados, que a notificação compulsória da violência deveria ser feita por algum profissional que a atendesse. Que isso desencadearia o registro de um boletim de ocorrência, mas que o serviço de saúde tinha todas as condições e obrigações de encaminhar o caso e se responsabilizar pela perícia coletando, inclusive, os vestígios de sêmen. Perguntei se havia feito ducha vaginal, e ela disse que não. Recomendei que não fizesse. Encaminhei a norma técnica de prevenção e tratamento dos agravos de violência sexual, e disse que ela poderia ser atendida por uma psicóloga, ginecologista, assistente social, que deveriam se responsabilizar pelo acompanhamento nos dias subsequentes, e que a medicação antirretroviral deveria ser tomada por um mês. Tudo isso pelo SUS? ela me perguntou, “Sim, é o que está previsto”, respondi.
Na manhã seguinte, caminhou 5 km até a UPA de Capão da Canoa, e não foi nada disso o que aconteceu. Duvidaram de sua palavra, “se fosse mesmo verdade você teria vindo ontem”. Palavra por palavra escrita fui testemunhando a sistemática violação de direitos. Insisti para que ela não fosse embora, pois era crucial iniciar o tratamento. “Não sabem do que eu estou falando, disseram que vão me receitar vacina para hepatite”. Profilaxia pós exposição, a sigla é PEP, pode dizer esses termos, orientei-a. Pedi o nome do serviço e dos profissionais que a estavam atendendo, e recomendei que pedisse uma cópia do seu prontuário ao final do atendimento, mas “ninguém aqui usa crachá”. Ela me relatou que, ao pedir o nome, a mulher que a atendia começou a gritar e perguntar com quem estava falando ao celular.
“Estou sendo violentada por mulheres, após viver tudo isso”, ela me contava, “até os enfermeiros homens me tratam melhor, mas é horrível, sinto que estou tendo outro ataque de pânico, ela está dizendo que vai chamar a polícia para me prender por desacato”. Ela não foi examinada por ginecologista, mesmo sendo prevista a atuação de um profissional em unidades de pronto-atendimento, foi-lhe negado o prontuário e encaminhada para o Serviço de Atendimento Especializado do município, para retirar a medicação para os 28 dias seguintes.
Além disso, foi desencorajada a fazer um boletim de ocorrência, “isso não vai adiantar nada, você não vai conseguir um aborto legal pelo SUS”. Segui conversando com ela nos dias seguintes, em que me relatou estar com secreção vaginal e muita coceira, “eu sempre ficava com esse corrimento quando meu primo me estuprava, e isso acontecia muito”. Além de pânico em ter que voltar ao serviço de saúde, também não recebeu nenhum atestado.
Eliane Brum diz que escreve para não morrer e para não matar, e eu empresto suas palavras para expressar a minha revolta. Escutar relatos da violência que acontece nos serviços de saúde, sendo sanitarista, me faz ter vontade de pegar em armas, organizar protestos. E por isso eu também poderia ser presa. Minha arma é, então, escrever, dar meu testemunho por esta mulher cuja trajetória de vida acompanho há cinco anos e para quem me tornei sua referência pessoal para estes problemas. Tornar-me cúmplice do seu sofrimento - tornarmo-nos - é algo bastante frequente quando trabalhamos com vítimas da violência que também nos violenta.
A herança maldita dos últimos anos do governo Bolsonaro foi o aumento da violência de gênero em todas as suas dimensões e expressões, e eu não precisaria usar esta coluna para repetir as estatísticas publicizadas ao longo deste mês. Mas, diante desse cenário, é preciso dizer que mulheres e identidades subalternizadas pelo patriarcado estão sendo cotidianamente violentadas, via de regra, por quem deveria cuidá-las.
E, se ao ler esta coluna, você não conhece ninguém que esteja passando por isso, preciso alertar-lhe: isso não se chama privilégio, mas indiferença. Minha arma mais potente contra essa guerra instaurada é o cuidado, por isso, cuidamo-nos. Não sem revolta. Que não tarde a revolta dos cuidados, necessitamos com urgência.
* Lara Werner é sanitarista com formação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e integrante do programa de extensão Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko