A especulação financeira e o lavajatismo mantém o domínio ativo sobre frações do Estado obscuro
Dois fatos, aparentemente distantes e não relacionados, tomaram conta do debate público nesta semana. A estratosférica taxa de juros aplicada e mantida pelo Banco Central brasileiro e a operação Sequaz da Polícia Federal.
Neste dia 22 de março, o Conselho de Política Monetária do Estado brasileiro anunciou que a taxa de juros Selic foi mantida em 13,75% impondo juros reais – a taxa abatida da inflação – em mais de 8,5%. O comunicado do Copom avança o sinal indicando que a taxa não descerá no próximo período. Estabelecendo uma verdadeira política econômica concorrente a do governo eleito.
Em sua palestra num seminário sobre desenvolvimento, promovido pelo BNDES, o economista ganhador do Prêmio Nobel em 2002, Joseph Stiglitz, disse que o Brasil vem sobrevivendo a uma “pena de morte”, ao se referir à taxa de juros praticada no país, que classificou como “chocante”.
No mesmo seminário Jeffrey Sachs, também pesquisador reconhecido no mundo acadêmico, igualmente criticou a alta taxa aplicada. Um manifesto, intitulado “Taxa de juros para a estabilidade duradoura: Manifesto de economistas em favor do desenvolvimento do Brasil”, também vai no mesmo sentido da denúncia sobre a política monetária do Banco Central.
A decisão evidencia que a taxa de juros alta não é uma medida unicamente de caráter técnico para controlar a inflação derivada da alta do consumo. O consumo está em baixa no país como atestam, por exemplo, as montadoras de automóveis ao decretaram férias coletivas de seus empregados em função da baixa venda de seus produtos.
Neste mesmo dia 22, a Polícia Federal deflagrou uma operação para prender uma organização criminosa que atentaria contra a vida de autoridades. Segundo a organização policial, os alvos seriam “servidores públicos e autoridades” e envolveriam “homicídios e extorsão mediante sequestro”. Entre eles estaria Sergio Mouro, ex-juiz, ex-ministro de Bolsonaro e hoje senador por um partido de direita. Segundo a imprensa, o Ministério Público de São Paulo, Sergio Moro e a Polícia Federal já acompanhavam o caso, ao menos desde janeiro deste ano.
Majoritariamente, veículos de comunicação, membros do governo e parlamentares disseram que essa operação seria uma demonstração da independência da Polícia Federal. Efetivamente o comportamento do governo Lula foi diametralmente oposto ao de Bolsonaro, que aparelhou a PF em seu mandato. Contudo há uma eloquente convergência: a operação foi deflagrada pela PF um dia após uma entrevista na qual o presidente Lula diz ter tido um forte sentimento negativo sobre Sergio Moro.
Em entrevista para o canal ICL Notícias, o promotor de Justiça de São Paulo Lincoln Gakiya – ele próprio o principal alvo do plano criminoso – comemorou que a operação foi antecipada em 45 dias uma vez que havia sido planejada para acontecer em 90 dias. Sua entrevista é esclarecedora. Informou que o pedido à juíza federal no Paraná Gabriela Hardt – onde se coordenava a ação integrada das polícias Federal, Legislativa e paulista – havia duas ou três semanas e foi expedido exatamente no dia 21.
Segundo o site 247, a ordem judicial para a execução da operação foi assinada minutos após a entrevista do presidente Lula. Disse ainda que os “alvos” sabiam do transcorrer das investigações. Imediatamente se estabeleceu um forte debate público e informações da operação foram repassadas a alguns veículos de comunicação. Os mecanismos lavajatistas reemergiram seguindo à risca o manual.
O senador do União Brasil passou a dizer que o presidente Lula incentiva a violência e “colocava em risco sua família”. Parlamentares bolsonaristas falam em abertura do processo de impeachment, o que não teria importância em si se não fosse o fato de demonstrar os verdadeiros objetivos desse campo. O que pareceria ser uma operação unicamente independente e republicana da polícia pode favorecer uma retomada do fôlego da extrema direita no país.
A proteção política dada pela ideia de autonomia confere às burocracias autonomizadas e às frações de classe que as dirigem muita margem para operações políticas. As escolhas racionais que possam interferir na correlação de forças políticas e nos resultados econômicos são valiosíssimas. Mas a eficácia dessas escolhas racionais está diretamente relacionada às relações não racionais da política.
A autonomia institucional, reivindicada pelo capital financeiro e pelas frações armadas do Estado – polícias e forças armadas – confere as condições para que as decisões dos grupos que as dirigem não precisem ser confrontadas com o jogo mais amplo dos interesses explicitados no Parlamento, ou mesmo no interior de um governo. Assim, a autonomia é sempre apresentada como um atributo da boa técnica ou como única forma de fazer a técnica, lugar do positivo, sobrepujar a política, lugar do negativo.
A autonomia de agências estatais não implica ou deriva em aumento dos índices de republicanismo ou de isenção política de tais agências. Tampouco há evidências de que tenha havido aumento da qualidade técnica de suas ações. Via de regra, o aumento da autonomia resulta em aumento da privatização e partidarização dessas mesmas agências, em decorrência da imunidade que ganham em relação ao controle social e ao escrutínio público. A autonomia é o caminho de sombras no qual se movimentam os interesses das classes dominantes e frações hegemônicas e seus agentes burocráticos para exercerem a política como meio do poder. A boa técnica não orienta as agências estatais autonomizadas, como vimos com a Força Tarefa do MPF na Lava Jato.
Os episódios que, em avalanche, desabaram sobre a democracia no país desde 2013 devem servir para um processo de compreensão sobre o caráter do Estado. A democracia só pode se autoproteger com luz sobre o Estado e não sombras. As autonomias institucionais de agências estatais, tão relevantes para a totalidade da sociedade, permitem movimentos com interesses obscuros e, através da manipulação de narrativas técnicas, operações, movimentos, datas, informações, coincidências, apoio de veículos de comunicação, determinar o jogo econômico, político e a tendência da opinião pública.
Os episódios ocorridos nesse dia 22 demonstram que a especulação financeira e o lavajatismo mantém o domínio ativo sobre frações do Estado obscuro. A essa esperteza da autonomia privatista e corporativista, deve-se contrapor a transparência e o controle social para preservar o que as urnas de 2022 determinaram, legitimamente.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko