Rio Grande do Sul

Coluna

Revisão do PDDUA em Porto Alegre: pontos para reflexão

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"O processo desenvolvido pela PMPA não possuiu o alcance necessário para afirmar a participação ampla e democrática da diversidade que compõe a população de Porto Alegre" - Foto: Pedro Piegas / PMPA
Devemos planejar juntos a cidade em que queremos viver: palco da democracia, socialmente inclusiva

Neste mês ocorreu em Porto Alegre a 1ª Conferência de Avaliação do Plano Diretor, comandada pela Prefeitura, com o apoio de 46 entidades consultivas. Os Planos Diretores têm papel estruturante no processo de planejamento, devem abranger o território do município como um todo e devem ser realizados a partir de processos participativos, envolvendo diferentes setores da sociedade, além do Legislativo.

O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA), aprovado em 1999 e com primeira revisão em 2010, deveria ter sua mais recente revisão realizada em 2020, não ocorrida por motivos diversos: atraso no início dos trabalhos, pandemia da covid-19, fatiamento e alterações ad hoc do PDDUA, e alterações dos produtos para contratação de consultora via PNUD.

Até agora, a etapa de leitura, síntese da cidade em que vivemos, ainda não foi concluída. A 1ª Conferência foi uma das etapas desse processo e objetivou avaliar o PDDUA. Na Conferência foram discutidos temas cruciais, como: regime urbanísticos (densidades, alturas e volumetrias), habitações e áreas de interesse social, proteção dos topos de morro, destinação dos recursos do solo criado, demarcações de áreas indígenas e quilombos urbanos, participação popular nas diretrizes urbanísticas, entre outros. De um lado, a forte pressão do pensamento e da prática neoliberal, centrada na ação do capital em sua versão contemporânea, que mais se adere ao espaço urbano: o rentismo imobiliário; de outro, as forças progressistas que buscam formas alternativas, inclusivas e ambientalmente sustentáveis de pensar e viver a cidade.

A Conferência foi organizada a partir de sete eixos temáticos: Desenvolvimento Social e Cultural; Ambiente Natural; Patrimônio Cultural; Mobilidade e Transporte; Desempenho, Estrutura e Infraestrutura Urbana; Desenvolvimento Econômico e Gestão da Cidade.

No primeiro dia realizaram-se palestras, que destacaram críticas à forma de crescimento da cidade na última década, aos processos de gestão participativa e ao descompasso entre políticas de estímulo à produção de habitação de mercado e a ausência de um olhar atento às habitações de interesse social, às condições de pobreza dos assentamentos precários e as zonas de risco. Enquanto isso, Porto Alegre assiste a explosão da venda de solo criado em áreas nobres e valorizadas da cidade, com intensa destruição de patrimônio histórico e cultural e alterações dramáticas da paisagem para agradar ao capital imobiliário, como os projetos especiais na orla do Guaíba. 

No segundo dia tivemos oficinas por eixos temáticos, mediadas por técnicos da PMPA. Os grupos elaboraram moções, com intensa participação popular, embora o evento tenha ocorrido em local pouco acessível para grande parte da população (Salão de Atos da PUC/RS) e em horário de trabalho (das 9h às 17h), impossibilitando uma participação popular mais ampla e diversa. 

No terceiro dia foram votadas as recomendações realizadas no dia anterior e foi possível perceber o acirramento em torno dos debates em torno dos interesses mais imediatos da especulação imobiliária, como a criação de regimes urbanísticos por decreto - estratégia que a plenária rejeitou mediante apresentação e aprovação de proposta específica para impedir a discricionariedade da prática adotada nos planos para Centro Histórico e para o 4° Distrito. 

Ao longo do evento a pressão exercida pelo mercado imobiliário para ampliação de áreas e índices construtivos suscitou manifestações das representações de entidades, movimentos sociais e coletivos presentes. Um ponto polêmico foi a questão dos topos de morro e o interesse imobiliário em construir prédios altos nestas regiões topograficamente privilegiadas e ambientalmente sensíveis.

Outra questão foi a liberação de índices de altura, conforme deseja o setor imobiliário e esbarra numa limitação demográfica a ser avaliada objetivamente: Porto Alegre assiste a sua população estável a décadas, inexistindo justificativa demográfica para grandes projetos imobiliários e edifícios altos, que afetam a paisagem, prejudicam a infraestrutura urbana e não trazem benefícios econômicos de longo prazo para a cidade. 

Igualmente, a venda do solo criado não tem ocorrido nos bairros que observaram maior crescimento demográfico (majoritariamente de população de baixa renda), o que seria de supor, caso as construções que utilizam o solo criado fossem realizadas para as populações periféricas que necessitam de habitação. Ao contrário, bairros com maiores processos de verticalização concentram população com maior renda e assistiram suas populações diminuírem, de modo que os interesses imobiliários de curto prazo não possuem aderência às necessidades da população. Baixos custos por metro quadrado construído e altos custos dos terrenos em zonas valorizadas da cidade formal são motores importantes do processo de verticalização. 

Embora seja possível avaliar a Conferência de modo positivo, a participação ainda ficou restrita ao conjunto de entidades que lutam pelo direito à cidade e o direito à habitação; aos técnicos da PMPA, que participaram de proposições e votações; aos interesses da construção civil, representados pelo Sindicato da Construção civil, corretores imobiliários, empreendedores e advogados que articulam e defendem os interesses imediatos do setor. 

O processo desenvolvido pela PMPA não possuiu o alcance necessário para afirmar a participação ampla e democrática da diversidade que compõe a população de Porto Alegre. Por este motivo, o IAB/RS propôs ao Executivo a necessidade de nova rodada de oficinas nas Regiões de Planejamento, realizadas apenas em 2019, com somente um encontro por Região.

As necessidades dos diferentes bairros de Porto Alegre não são mais as mesmas do período pré-pandêmico. Importa aumentar o alcance das discussões participativas neste processo, sobretudo por reconhecermos que o diálogo e as negociações com o poderoso setor imobiliário se acirram no momento de tomada de decisão.

Na cidade que queremos os estudos técnicos devem ser apresentados à população nas etapas participativas de avaliação e diagnóstico. Assim, espera-se que os dados levantados pela consultoria internacional contratada, a Ernst & Young, ofereçam rodadas de oficinas territoriais e temáticas. Outro ponto importante é a revisão dos programas do Centro Histórico e do 4º Distrito.

Apesar da Conferência dever tratar da etapa de avaliação, as recomendações foram feitas em formato de propostas, segundo direcionamento metodológico, já que os participantes responderam a perguntas que suscitaram propostas ao invés da leitura da cidade. Questiona-se se esta opção coloca em questão se houve de fato uma avaliação do PDDUA. Ainda assim, o tempo e dedicação dos que exerceram a cidadania deve ser respeitado e valorizado, afinal, Porto Alegre, referência mundial do OP, merece e clama por um processo democrático de caráter deliberativo na elaboração do principal instrumento de planejamento da cidade.

Devemos planejar juntos a cidade em que queremos viver: palco da democracia, socialmente inclusiva, ambientalmente protegida, culturalmente respeitosa e urbanisticamente pensada para todos seus habitantes.

* Heleniza Avila Campos (PROPUR/UFRGS; Observatório das Metrópoles-Núcleo Porto Alegre/comissão Cidades IAB/RS); Clarice Misocsky de Oliveira (PROPUR/UFRGS; Co-Presidente do IAB/RS, BR Cidades-Núcleo RS); Fabian Scholze Domingues (Departamento de Economia/UFRGS; Observatório das Metrópoles-Núcleo Porto Alegre/Comissão Cidades IAB/RS) 

** Este é um artigo de opinião. A visão das autoras e do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko