Desde sempre houve mulheres arriscando suas vidas por outras mulheres
Quando li O lugar, da escritora francesa e prêmio Nobel de literatura Annie Ernnaux, gamei na primeira página. Quis então seguir pelo O acontecimento, que trata sobre o aborto que ela fez em 1964.
Eu não tenho como deixar de associar o ano com o início da ditadura empresarial-militar no Brasil e as torturas sofridas por tantas mulheres.
Como mostra a autora, naquela época, as mulheres eram culpadas de tudo. Se hoje, ainda, nos fazem sentir assim, pensa numa sociedade na qual o silêncio ainda reinava. Como dizer, nessa sociedade, que as mulheres também queriam trepar, gozar e nem por isso se tornar mães. O que teria a ver uma coisa com a outra? O que tem a ver, ainda hoje, uma coisa com a outra?
Hoje as mulheres/lésbicas[1] temos muita mais liberdade para falar do que anos anteriores, mesmo que no Brasil, e em tantos outros países, o aborto ainda seja ilegal. Mas também tem uma relação, que, como avançamos e falamos mais, eles também avançam e nos matam e agridem mais. Brasil passou de ser o 7º para o 5º país em violência contra nós, mulheres/lésbicas. Depois do desGoverno de Bolsonaro não sei como ficaram os números, já que ele abriu as porteiras para que os fascistas saíssem do armário. E armou eles.
E mais. Lembram? Mandou comprar 300.000 comprimidos de Viagra, claro que eles não vão dizer que são armas para o estupro, então, criam o mito do imbrochável. (Ver texto de Lara nesta mesma coluna https://www.brasildefators.com.br/2022/04/20/a-droga-do-estupro) Existem muitos estudos a respeito dos feminicídios. Não é qualquer mulher que vai ser punida, por esses machos moralistas, são/somos as que saímos dos trilhos do patriarcado. A grande feminista e professora da UNB Rita Segato foi durante anos com suas alunas aos presídios a conversar com os machos violentos. Haja estômago. O objetivo era entender por que eles agrediam as mulheres. Recomendo seus livros, trabalhos, palestras.
Nós-outras, independentes, somos alvo, porque somos as feras e reSgatadas das prisões dos lares para ir nos bares. Isso os enfurece.
Annie, naquela época, mal podia mencionar que estava grávida e não queria seguir adiante. Nem na própria agenda-diário ela escrevia palavras como gravidez ou aborto. Nesse ponto avançamos muito. Argentina conseguiu legalizar a interrupção voluntária em 2020. Sempre vou lembrar do nosso acontecimento.
Avançamos em algumas coisas, como na possibilidade de falar em voz alta de aborto, porém, retrocedemos muito quanto à violência. Quando eu era criança, em Buenos Aires, com 7 anos, SETE, comecei a ir à escola sozinha. Eram duas quadras a pé. Foi o meu pedido de aniversário. Minha mãe duvidou, óbvio. Mas como eu saí a ela, deve de ter aberto um sorriso largo e acabou aceitando.
Hoje isso seria impensável.
Hoje, mesmo no Brasil, podemos ir às ruas com o lenço verde, que é a bandeira da legalização do aborto, mas as crianças não podem estar só nas ruas. A pedofilia e o tráfico de mulheres são grandes redes transnacionais. Então, nós avançamos, mas eles também. Não desanimemos, toda sociedade tem seu Dr Jekill e seu Mr Hyde.
Annie Ernaux escreve: “Era preciso então cobrar caro, pelos riscos, por esse saber que nunca seria reconhecido e pela vergonha que teriam dela logo em seguida. “Esse saber que nunca seria reconhecido, o das mulheres que ajudam outras mulheres a interromper uma gravidez, essa sabedoria que nem sempre precisa ter frequentado UNIversidades, mas que é PLURIversal. Esse saber que é o mesmo pelos que as nossas bruxas foram queimadas nas fogueiras.
Isto me faz querer dizer, Pare tudo!, e pensar na força dos feminismos. Não no feminino, mas nos feminiSmoS que com esse S cheio de curvas que nos atravessa e passa por todas as classes sociais e sexuais.
É necessário ver que desde sempre houve mulheres arriscando suas vidas por outras mulheres.
Dentro do que ainda não é possível falar, existem muitas que não cobram por essas ações feministas. E seguem arriscando suas vidas.
Nossos lenços, como cumplicidades feministas, vêm de longe.
[1] Utilizo mulheres/lésbicas seguindo a ideia da pensadora Monique Wittig de que não todas nos tornamos mulheres. As lésbicas não somos mulheres. É uma brecha à liberdade, ao escape do hétero-patriarcado-capitalista.
* mariam pessah : ARTivista feminista, escritora e poeta, autora de Em breve tudo se desacomodará, 2022; organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre desde 2017 e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko