Rio Grande do Sul

DISCRIMINAÇÃO

Defensoria pede indenização para famílias por intolerância religiosa em escola de Pinhal

Direção de escola municipal impediu que apresentação de alunas sobre religiões africanas tivesse tambores

Brasil de Fato | Pinhal |
Apresentação sobre a tradição de matriz africana na Feira das Nações da escola Miguel Calil Allem, em Balneário Pinhal, foi parcialmente impedida pela direção - Reprodução

Nesta terça-feira, 21 de março, é o Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. Também é marcado no mundo como o Dia Internacional de Luta contra a Discriminação Racial.

No Brasil, uma das faces em que se manifesta o racismo é através da discriminação, intolerância e/ou racismo religioso. Nesse sentido, a intolerância religiosa é praticada ainda em escolas, sendo um entrave para a efetivação de uma educação efetivamente antirracista.

Um caso recente desse cenário aconteceu em uma escola da rede municipal de Balneário Pinhal (RS), segundo afirma ação da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul (DPE).

Segundo a ação com pedido indenizatória, o caso aconteceu ainda em janeiro, quando a direção da escola municipal Miguel Calil Allem impediu a apresentação de uma adolescente de 13 anos, que aconteceria na Feira das Nações da instituição e mostraria danças e música inspiradas na religiosidade africana.


Direção da escola municipal de Balneário Pinhal impediu a apresentação de uma adolescente que mostraria danças e música inspiradas na religiosidade africana. Na foto, as famílias das estudantes realizaram uma manifestação na Câmara local / Reprodução

A “Cantigas de Iansã” foi ensaiada por meses pela estudante e uma colega, que utilizaria tambores e rezas da Umbanda. Estariam expostos também, imagens e adereços de forma a exibir os símbolos e como é a prática religiosa das estudantes e suas famílias.

Porém, no dia do evento, as estudantes foram proibidas de realizar a apresentação, argumentando que a decisão era baseada em ordens da Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC) de Balneário Pinhal.

Proibição de tambores

Ainda segundo a DPE, na ocasião, as estudantes foram informadas pela diretoria que poderiam realizar a apresentação sem a utilização de instrumentos de som, o que inviabilizaria toda a performance.

De acordo com o Defensor Público responsável pelo ajuizamento da ação, Clóvis Bozza Neto, a justificativa da instituição de ensino foi "a repercussão negativa que outras apresentações semelhantes" geraram com pais de alunos.

Na contestação da ação, a gestão municipal argumentou que não houve qualquer intenção de prática de intolerância religiosa, ressaltando que não teve impedimento em relação à apresentação da dança, somente em relação aos instrumentos musicais. Segundo a Defensoria, no dia do referido evento, estavam previstas a reprodução de músicas típicas, de outras nações.


Apresentação mostraria aspectos simbólicos e culturais das religiões de matriz africana, praticada pelas famílias das estudantes / Reprodução

Prefeitura contesta versão

Porém, a gestão municipal de Pinhal também afirma que a direção da escola entendeu que, na verdade, "aspectos relacionados às práticas religiosas predominantes das nações africanas escapavam ao escopo do que foi proposto para o evento".

A reportagem do Brasil de Fato RS entrou em contato com a SMEC de Balneário Pinhal, perguntando quem de fato foi o responsável pela ordem ou impedimento, e qual sua justificativa. Na ocasião, a prefeitura ainda não havia se manifestado no processo. A SMEC não respondeu ao nosso questionamento, vindo depois a apresentar sua argumentação nos autos.

A ação indenizatória está tramitando no Juizado Especial da Fazenda Pública da Comarca de Tramandaí (RS). A Defensoria pede pagamento de danos morais às famílias das estudantes, uma audiência de conciliação e que o município de Balneário Pinhal publique uma nota direcionada à população que pratica as religiões de matriz africana, além da realização de um evento com participação de representantes dos povos de matriz africana da região, voltado para toda a comunidade escolar do município.

Estudantes fizeram a apresentação na rua

Segundo narra a mãe de uma das adolescentes, Tais Bastos, a proibição, no dia, fez com que as alunas se apresentassem na rua, fora do ambiente escolar. Após a execução da dança e das músicas, no encerramento, as estudantes passaram a distribuir brindes para os que assistiam, confeccionados por elas próprias.

Conforme o relato da mãe, houve uma rejeição, por parte de pais e mães de outros alunos. "Fizeram lembrancinhas, com algumas balas, mas alguns pais não deixavam os filhos pegarem, pois seriam coisas do demônio." Ela afirmou, em postagem nas redes sociais, que "doeu ver a menina que estava caracterizada de Oxum quase chorando, pois não pôde se apresentar", isso após tanto tempo de preparo, estudo e pesquisa.

Para o defensor Clóvis Bozza Neto, a atitude é fruto de preconceitos e foi impulsionada pelos agentes públicos envolvidos na restrição, o que torna a situação "ainda mais repudiável”.


Estariam expostos também imagens e adereços de forma a exibir os símbolos e como é a prática religiosa das estudantes e suas famílias / Reprodução

Conhecer a História para respeitar

A religiosidade de matriz africana na diáspora brasileira ressignificou símbolos, territórios. E a África dentro de cada terreiro de Candomblé ordenou a liturgia e resiste até hoje seguindo o caminho deixado por seus ancestrais.

Registrado pelos estudiosos da História do Brasil, a Quebra de Xangô, ou o Dia do Quebra ou Quebra de 1912, foi um crime hediondo de Intolerância Religiosa que aconteceu no dia 1 de fevereiro de 1912 em Maceió, Alagoas.

O ato culminou com a invasão e destruição dos principais Terreiros de Xangô em Maceió. Todas as Casas de Culto Afro-Brasileiro existentes na região foram destruídas. Terreiros foram invadidos, objetos sagrados retirados e queimados em praça pública. Pais e Mães de Santo foram espancados. A partir daí, os adeptos, iniciados nas práticas de Culto aos Orixás, criaram o chamado Xangô Rezado Baixo.

No período de 1889-1930 era comum a polícia perseguir os Cultos das Religiões de Matriz Africana, invadindo terreiros e apreendendo objetos sagrados. Apesar da Constituição de 1891 garantir a liberdade de crença e culto, o Código Penal de 1890 criminalizava as Casas Sagradas e tipificava as manifestações, práticas rituais, como curandeirismo, baixo espiritismo, charlatanismo, alegando o exercício ilegal da medicina.

Esse mesmo Código Penal também criminalizava a Capoeira e o Samba. Ou seja, tudo que fosse resultante da Cultura Afro-Brasileira.

Já no período da República, o Candomblé foi proibido de exercer as suas atividades e os Terreiros ficaram subjugados à Delegacia de Jogos, Entorpecentes e Lenocínio. A Polícia Civil do Rio de Janeiro tem em seu poder, no Museu da Criminologia, mais de 200 peças sagradas da Umbanda e Candomblé, apreendidas desde a Primeira República (1889-1930). Nessa época as Religiões Afro-Brasileiras eram duramente perseguidas e proibidas. Entre 1945 e 1985 o acervo religioso apreendido foi classificado de forma racista, pejorativa como “Coleção de Magia Negra”.

Origem na resistência

O professor Vagner Gonçalves da Silva, autor de Exu – O guardião da casa do futuro e estudioso das religiões afro-brasileiras, afirma que as origens da violência contra essas crenças estão na escravidão, processo que “sequestrou milhões de pessoas de diferentes etnias africanas, separou famílias e tentou destruir formas de cultura que não fossem brancas e europeias”. “O europeu não teria feito a colonização só por meio de armas. Estado e Igreja eram braços da colonização, e serviam para desumanizar os povos sequestrados, tornando aceitável a sua escravização”, afirma.

Neste contexto, os povos africanos trazidos à força ao Brasil criaram ou adaptaram as religiões que aqui encontraram: enquanto o Candomblé foi criado no Brasil a partir da “importação” de diferentes cultos de origem africana, a Umbanda é uma mistura de elementos das religiões indígenas, africanas e católica. Elas nasceram, portanto, como forma de resistência ao colonialismo e ao catolicismo, que impunha a escravidão como “única forma de salvar a alma dos negros”, segundo o pesquisador.

As “novas” religiões foram criminalizadas em um processo semelhante àquele experimentado pelo paganismo na Europa – que vivia então o auge da caça às bruxas. Mesmo após a independência do Brasil, as crenças de matriz africana continuaram a ser marginalizadas: “No Brasil República, em vez de heresia, elas passaram a ser tratadas como expressão de inferioridade racial”, afirma Gonçalves.

Resistência atual

Hoje, a mesma violência persiste. O que muda, segundo Vagner Gonçalves, são os perpetuadores da intolerância. “As religiões de matriz africana foram perseguidas pela inquisição, pelo governo colonial, pelo Estado e, agora, por grupos neopentecostais, que também estão no poder na bancada evangélica”, afirma.

Para o professor, um dos maiores problemas é que o Estado simplesmente não tem preparação para lidar com esse tipo de violência: “Primeiro é preciso tipificar o crime como ofensa religiosa, e em geral as delegacias não estão qualificadas para isso”, afirma.

Para o pesquisador, uma das formas de combate à violência religiosa é justamente a criação de melhores condições de ensino nas escolas públicas para que se aborde em sala de aula o respeito religioso e os males do racismo. “Os alunos das escolas públicas, em sua maioria, são negros, mas o que se ensina a eles é a história branca e europeia. Eles aprendem mitologia grega, mas não aprendem mitologia iorubá. O que esses deuses têm a dizer a uma molecada negra e periférica?”, questiona a pesquisadora Carolina Rocha.

* Com informações da Revista Cult e Página das Mulheres de Axé.


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Edição: Katia Marko