Rio Grande do Sul

PERIFERIA

Pedagogia das Africanidades: projeto lançado na Restinga resgata modo afro de ensinar

Evento inaugural reuniu militantes sociais e culturais em roda de conversa com Elisa Larkin, presidenta do Ipeafro

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Atividade foi realizada na Sociedade Africana Reino de Oxum, no dia de aniversário do nascimento de Adbias do Nascimento e Carolina de Jesus e do assassinato de Marielle Franco - Foto: Marcelo Ferreira

Uma celebração do modo africano de aprender e ensinar na periferia brasileira, reunindo dezenas de pessoas que atuam diretamente com arte, educação, religião de matriz africana, acolhimento social e organização popular em Porto Alegre e região. Assim foi a manhã de terça-feira (14) na Restinga, periferia da capital gaúcha, com o lançamento do Projeto Pedagogia das Africanidades, que promove oficinas e seminários a partir do modo afro de ensinar e aprender. A realização foi do Complexo Esportivo Barro Vermelho/Ponto de Cultura Africanidade.

O dia escolhido foi carregado de simbolismo: em 14 de março são celebrados os aniversários de nascimento de ícones da luta contra o racismo, Adbias do Nascimento e Carolina de Jesus. Também é data de luta contra o assassinato do povo negro, já que em 14 de março, há cinco anos, Marielle Franco era assassinada.

A convidada especial da atividade veio direto do Rio de janeiro. A presidenta do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro/RJ), Elisa Larkin, viúva de Adbias, compartilhou reflexões sobre aspectos da africanidade no contexto comunitário. “Um marco histórico” na organização social do povo negro e periférico de Porto Alegre, afirmam os convidados que lotaram a atividade na sede da Sociedade Africana Reino de Oxum, de Mãe Cleide de Oxum Demum.

Antes de ouvir Elisa, dispostos em formato de roda e servidos por um café africanista, os presentes se apresentaram, acompanharam um xirê de tambores de alabês do Reino de Oxum, uma intervenção poética de Mariana Marmontel, do Poetas Vivos, e saudações de convidados. A deputada federal Maria do Rosário (PT/RS), que viabilizou o convênio do projeto com o Ministério do Turismo com emenda parlamentar, enviou um vídeo manifestando a importância da iniciativa.

Quilombismo para acabar com a desigualdade


Ativista trouxe o conceito "quilombismo", de Abdias, para "construir a igualdade no sentido social de superar as desigualdades em todos os seus aspectos" / Foto: Marcelo Ferreira

Em sua fala, a presidenta do Ipeafro manifestou agradecimento e emoção em estar na Restinga “junto ao povo que o Abdias sempre tinha em seu coração, em sua mente e sua ação”. Além de lembrar do intelectual neto de africanos escravizados que foi poeta, escritor, dramaturgo, artista visual, deputado e senador, falecido em 2011, Elisa trouxe à memória ainda Carolina de Jesus e Marielle Franco, em referência à data.

“Sei que tanto Adbias como Carolina e Marielle não teriam outro destino que o coletivo da população negra organizada na sua luta, não só contra o racismo, mas de construção de uma vida em liberdade, que é o quilombismo”, disse. A proposta, segundo ela, é de organização não só da população negra, mas para que o Estado brasileiro “seja capaz de construir a igualdade no sentido social de superar as desigualdades em todos os seus aspectos”.

Ao saudar as convidadas e os convidados presentes, disse que representam “o conjunto de vitórias e construções que a população de origem africana, descendente dos africanos escravizados no Brasil, veio construindo ao longo dos séculos”. Uma construção de “liberdade e soberania dentro de contextos de escravização e de racismo, que oprimem essas comunidades, que impõem uma série de problemas, mas que esse povo está sempre superando”.

Elisa destacou que o evento também se insere nas campanhas Março por Marielle e Anderson e Agenda 21 Dias de Ativismo contra o Racismo. Este último, explicou que é uma campanha da sociedade civil, do conjunto de sociedades negras do Rio de Janeiro, que há vários anos promovem ações a partir da data de 21 de março, Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, que marca o massacre de pessoas que se organizavam contra o apartheid, em Sharpeville, na África do Sul, nos anos 1960.

Resistência da religião de matriz africana


Elisa entregou livros de presente ao projeto nas mãos da Mãe Cleide de Oxum / Foto: Marcelo Ferreira

Mãe Cleide Guedes de Oxum, ialorixá que comanda a casa onde ocorreu a atividade, disse sentir-se “fortificada e acolhedora” em poder agregar com os irmãos. Para ela, o encontro demonstra o orgulho e a força. “Que isso possa ser visto e sentido por muitas pessoas, que às vezes falam do africano, mas o africano tem ancestralidade, tem respeito, ele tem união, ele é acolhedor.”

Para ela, em um Brasil tão racista, as casas de religião de matriz africana acabam sendo um ponto de resistência. “A gente não desiste, porque a gente se une cada vez mais, porque a gente tem força, tem raiz e tem axé. A gente não se entrega e continua levando adiante tudo aquilo que nos foi passado e nos é liberado pelos ancestrais”, afirmou.

Eunice Mariano, que é Conselheira Municipal da Cultura, entende que o evento foi “um marco na africanidade”, ao reforçar o poder da oralidade. “Escrito nós temos pouco, as nossas crianças precisam saber disso, a ancestralidade africana é acolhedora, acolhe brancos, pretos, todos”, comentou. Para ela, é fundamental que se desmistifique a religião de matriz africana.

“Quando se fala na religião de matriz africana, quando vê uma pessoa na esquina acendendo uma vela, muitos pensam que é para maldade. As pessoas não entendem o axé que tá ali. Isso tem que ser desmistificado e só através dessas oportunidades que vão se esclarecer o que é a matriz africana”, defendeu.


Apresentação de slam dos Poetas Vivos foi uma das atrações culturais da atividade / Foto: Marcelo Ferreira

Trocar ideias, fazer política

Doutoranda em Sociologia, artista e militante social antirracista, Nina Fola ressaltou que o espaço aberto pelo Projeto Pedagogia das Africanidades é local “de pensar e de falar, de trocar ideias, de fazer política, de valorizar as mulheres que com maestria organizam, gerenciam uma comunidade diversa, de potencial desse lugar que não fecha a porta para pessoas trans, nunca fechou, e que dentro desse lugar essas pessoas têm a possibilidade de existência igual às outras pessoas”.

Revelou que, ao saber do assassinato de Marielle Franco - que assim como ela era mulher negra, socióloga e usava cabelo black - também sentiu-se assassinada. “Hoje a gente tem uma substancial presença de mulheres em cargos políticos, e queremos mais. Então que a gente faça desse dia a memória fundamental, para continuar lutando, continuar honrando a vida daqueles que proporcionaram vida pra gente”, assinalou.

Força da cultura periférica


Atuantes na cultura da cidade, Richard Serraria, Mestre Griô Vander de Paula e Nina Fola foram convidados a fazer uma fala no evento / Foto: Marcelo Ferreira

O músico e pesquisador Richard Serraria ressaltou a relevância histórica e política do evento, levando em conta a construção histórica do país. “Fundamentalmente a partir da presença dos povos originários e depois a partir do processo de colonização, a invasão europeia aqui, consequentemente baseada no escravismo negro, a gente vai entender que a conformação cultural desse país é indispensavelmente amefricana, pra usar o conceito da Lelia Gonzalez”, disse.

Para ele, estar na Restinga remete ao processo de higienização dos centros das cidades do país, quando ao longo do século XX as populações pobres e negras foram empurradas para as periferias. “A gente poder se levantar contra isso através da potência de um terreiro de matriz africana, eu acho que isso se reveste de fundamental importância, porque é uma forma de enfrentamento ao racismo e a busca da diminuição das desigualdades sociais”, avaliou.

Para ele, “a força, a pujança dessa presença, no século XXI, através de uma cultura viva, através de terreiros de matriz africana” é fundamental ao combate ao preconceito. “Esse racismo estrutural tão bem conceituado por Silva Almeida que a gente vê no cotidiano em diferentes modos: o racismo religioso, na tentativa de apagamento das religiões de matriz africana, o racismo epistemológico, muitas vezes quando não se reconhece esses conhecimentos vindo desses mestres e mestras da cultura popular, a questão como a gente está vendo agora presentemente também na Serra Gaúcha do trabalho escravo, tudo são dimensões desse racismo.”

Um projeto em expansão

O ator, arte-ativista e gestor cultural do Pedagogia das Africanidades, André de Jesus, conta que o projeto está na fase da produção de conhecimento popular, com atuação cultural. Entre as atividades que serão oferecidas à comunidade está a oficina de danças brasileiras, que pega a terceira idade, público que muitas vezes fica fora de projetos mais práticos.

Também serão realizadas atividades de culinária com a Mãe Cleide, que vai compartilhar seus conhecimentos religiosos. “Vai ter roda de conversa, de alimento, de troca de ideias com pessoas de religião, ela tem uma rede enorme de pais e mães de santo”, explica.


André de Jesus (E), Mestre Ventura (D) e jovens alabês (C) em apresentação de tambores / Foto: Marcelo Ferreira

Para os mais jovem, André conta que terão atividades com mestres da capoeira, estudos sobre tambor de religião e sopapo, com mestres de referência da região. Além disso, o projeto vai trabalhar a linguagem artística cultural. “A gente vai trazer esses slammers, a literatura negra jovem, além da literatura escrita”, conta.

Junto a isso, serão realizados seminários com a comunidade e com as entidades de ensino parceiras do projeto, como o Instituto Federal, através do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) e escolas de educação básica da região. “Inclusive nós fazemos formação para professores na linguagem da pedagogia das africanidades, que também é uma de nossas expertises, e a Elisa é uma de nossas tutoras”, revela.

Ainda segundo ele, o projeto vai ter um segundo momento com aprofundamento no teatro e no audiovisual. “A gente vai estar montando o espetáculo sob a memória de João Candido Felisberto, com o Grupo Grito, que é um grupo do ponto de cultura. A gente também está querendo entrar no cinema negro, querendo fazer cinema, para contar a história do Mestre Ventura, que veio com 12 anos da antiga Santa Luzia pra Restinga e nunca mais saiu.”

José Luis Vieira Ventura celebra a oportunidade que o projeto traz para que a comunidade redescubra o protagonismo negro. “Eu como sendo um mestre da cultura popular, e também um dos primeiros moradores a vir pra Restinga, a gente construiu pontos de cultura africanidade em locais de trabalho, que a pedagogia criou”, diz, citando o curso Trampando na Cultura, para os jovens e adolescentes.

“Isso faz com que haja uma transformação dentro da comunidade desses jovens, que as vezes não veem expectativa de vida, porque não conseguem sair da comunidade”, complementa. Para ele, trazer essas atividades e debates sobre a cultura africana, pessoas de renome, mestres e pessoas com conhecimento, é a melhor oportunidade para mudar a perspectiva de vida da comunidade.


:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::

Edição: Katia Marko