O saneamento tem várias facetas: nos dá a extrema comodidade de abrirmos as torneiras e recebermos a água potável no nosso lar, assim como apertar a descarga de nossos vasos e encaminhar nossos dejetos para o tratamento. A água é o mais importante, e fundamental, dos elementos para a ocorrência de qualquer tipo de vida. A estrutura de esgotamento sanitário evita o surgimento de muitas doenças de veiculação hídrica, impactando positivamente a saúde pública. Como consequência imediata e com a mesma importância, o meio ambiente é protegido e recuperado.
O Departamento Municipal de Água e Esgotos, já com seus 61 anos de vitoriosa existência, cumpre com todas essas tarefas. Destaque-se que o nosso querido DMAE é referência no cenário nacional, sempre citado como exemplo de qualidade do serviço prestado.
Na minha concepção, por todo esse envolvimento com a vida, o saneamento deve ser sempre público. Porém, o prefeito municipal quer privatizar o DMAE.
Seu argumento para privatizá-lo é de que o Departamento não teria capacidade de atender ao atual Marco do Saneamento (lei estruturada no governo federal recém-findo, com o objetivo principal de privatizar o setor) no que se refere à coleta e tratamento de esgoto, atingindo 90% em 2033. Quanto ao abastecimento de água potável, o percentual é de 99%, o que o Departamento já tinha atingido, até chegarem as administrações Marchezan e Melo, quando voltou a faltar água em alguns bairros da cidade, em decorrência da decisão lamentável de não realizar investimentos.
O argumento do prefeito não tem base verdadeira, pois a autarquia é saudável financeiramente e teria folgadas condições de contrair financiamento para cumprir com a exigência citada. Porto Alegre já tem mais de 80% de capacidade instalada para coleta e tratamento do esgoto sanitário. Portanto, estamos precisando de menos de 10% para atingir a meta e com dez anos de prazo para tal.
Pois agora tomamos um susto ao sabermos, através do engenheiro Adinaldo Soares de Fraga (aposentado do DMAE e seu Conselheiro Deliberativo representando o Sindicato dos Municipários), que o balancete do último quadrimestre de 2022 mostrou que o nosso órgão de saneamento tinha mais de R$ 300 milhões em aplicações financeiras!
Ora, órgão público de saneamento não é para ter superávit (nem déficit, evidentemente), deve aplicar o excedente das despesas de operação e custeio em ampliação e melhoria do seu serviço. Valor tão grande colocado na ciranda financeira só é possível por dois caminhos que a administração atual e a anterior têm trilhado: redução drástica e irresponsável do corpo funcional (que nunca foi excessivo) e redução – mais irresponsável ainda – de investimento.
Vimos que no último período (que começou com o ex-prefeito Júnior e continua com o prefeito Melo) faltou água em alguns bairros, problema superado há mais de dez anos. A nossa Capital, na sua área formal, tinha abastecimento universalizado. Com muito dinheiro aplicado, isso é um verdadeiro crime contra a saúde pública!
A existência desse imenso valor é também a negação mais cabal de que aquela entidade não teria condições de atender ao Marco de Saneamento.
Agora o chefe do Executivo municipal também fala em “passar o excedente” da concessão para a drenagem urbana, incluindo aí até habitação. O Departamento de Esgoto Pluvial foi extinto e sua tarefa repassada para o próprio DMAE. Só quem não conhece nada do tema desconhecia que seria absolutamente impossível ampliar a macrodrenagem da cidade a partir dos recursos da tarifa de água e esgoto, pois são obras de valor elevado. “O excedente”, se houver, virá necessariamente do aumento da citada tarifa, seja o gestor público, ou privado.
Ocorre que a drenagem urbana sempre foi bancada pelos impostos municipais. Quiseram “empurrar” o peso da tarefa para o Departamento, o que não seria possível, como de fato ocorreu. O Executivo quer continuar se omitindo da macrodrenagem e quer repassar o custo político para um gestor privado. Mas, para tal, a tarifa do DMAE irá aumentar sim, e muito!
Relevante para essa discussão é conhecer relatório produzido pelo Transnational Institute (TNI), centro de pesquisa localizado na Holanda. Entre 2000 e 2019, 312 cidades em 37 países reestatizaram o serviço de saneamento. Entre eles, Alemanha, França, Argentina, Bolívia, Equador, Jamaica, entre tantos outros. O caso mais emblemático é o de Paris: depois de 23 anos privatizado, a municipalidade retomou o serviço. As razões sempre presentes em qualquer lugar do mundo: tarifas exorbitantes, universalização não atingida, perda da qualidade do serviço.
As empresas privadas que assumem o saneamento, que a irresponsabilidade dos gestores resolvem repassar, têm participação expressiva de fundos de investimento. Entidades cujo objetivo é única e exclusivamente buscar rendimentos para o capital investido, sem a menor preocupação com a qualidade do serviço prestado. A consequência é a que se vê pelo mundo afora.
Portanto, fica mais uma vez claríssimo que o senhor Melo quer entregar para os empresários um órgão exemplar, com corpo funcional capacitado, sem problema financeiro algum, orgulho de Porto Alegre. No entanto, o DMAE para eles é um maravilhoso filé (toda a população é obrigada a consumir seu serviço, e não há concorrência). Há “negócio” melhor que esse?!
Na década de 1970, a ditadura militar instituiu o Plano Nacional de Saneamento (Planasa) e pressionou para que houvesse apenas uma entidade de saneamento por estado. Surgiram, então, as empresas estaduais de Saneamento (a Corsan é anterior a essa determinação). Por mobilização dos servidores, da população e da Câmara de Vereadores, Porto Alegre não entregou o seu serviço. Somos a única capital do país que tem o seu próprio órgão de saneamento. Pela decisão, o governo militar não mais repassou um centavo sequer para nós; foi duro, mas o DMAE aprendeu a andar com as próprias pernas e se tornou o órgão que nos orgulha.
Pois agora precisamos de outra mobilização semelhante contra esse verdadeiro crime que o senhor prefeito Melo (já conhecido na cidade como Melonaro por total semelhança com o antigo presidente da República) quer cometer contra os porto-alegrenses. À luta!
* Ex-diretor-geral do DMAE
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira